Nesta quarta-feira, 5 de dezembro, completam-se 45 anos da assinatura do decreto de criação da Esdi. A inauguração da Escola, em suas atuais instalações, só se daria em julho de 1963. Transcrição da ata de inauguração no site da Esdi.
Discurso proferido pelo então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, quando assinou, em 5 de dezembro de 1962, no Palácio Guanabara, o decreto de criação da Esdi.
Meus senhores, a rigor seria desnecessário pretendermos […] o que quer que seja à exposição, como sempre ilustre e oportuna, que acaba de fazer o eminente Secretário de Educação do Estado [1]. Cumpre porém assinalar que, com esse ato e com poucos mais, fizemos celebrar com modéstia a abertura do terceiro ano desta administração.
Faço […], e por isso ouso aqui falar encerrando essa breve cerimônia, tendo em vista uma concepção que ouso exprimir porque creio traduz o sentimento profundo, ainda que nem sempre explicitado, da maior parte da nossa população.
A principal crise brasileira, aquela que sobretudo dificulta a solução das outras, é a falta de quadros no país. A produção de homens capazes, o volume, se assim posso dizer, de homens em condições de influir na solução dos problemas, bastava a este país quando ele era grande apenas na extensão territorial, mas não o era nem mesmo no vulto de sua população, e muito menos no número de pessoas em condições de consumir o que as suas elites podiam gerar, em arte, em riqueza, em técnica para problemas então relativamente simples.
Foi o tempo em que o Brasil tinha poucos engenheiros, mas a rigor não carecia de tê-los muitos, tinha poucos músicos, poucos poetas, poucos marceneiros, poucos ferreiros, poucos jurisconsultos, poucos bastavam enfim para o que então eram as necessidades de consumo do povo brasileiro. Hoje, felizmente, aumentou não somente a população, mas aumentou a sua exigência de civilização. No entanto, a crise da universidade, a crise de responsabilidade, a crise de uma autoridade verdadeiramente livre, consciente e capaz, fez com que empobrecesse enormemente a vida brasileira, e temos diante de nós o grave problema de formar uma democracia sem formar as elites populares, capazes de realmente dar-lhes significação, conteúdo e progresso autêntico.
No plano do nosso Estado, eu citaria, como exemplo deste esforço de superação da carência de quadros, a criação do Hospital de Clínicas para a Universidade nascente do Estado, a fim de que os médicos possam sair da faculdade em condições de ser médicos, e não apenas com o seu diploma embaixo do braço, a fim de que os médicos não proletarizem a medicina, transformando-a numa mera atividade profissional nos azares e acasos dos ambulatórios. O Instituto de Engenharia Sanitária, que vem dar um sentido a toda política de saneamento, a todo um esforço até aqui empírico, ainda que tecnicamente ajustado, de saneamento ou melhoria das condições sanitárias da vida em nosso Estado.
A função de pesquisa, a função de estabelecimento de normas, a luta contra a poluição das águas da Baía de Guanabara e outras tarefas que se abrem ao Instituto de Engenharia Sanitária, criada nos quadros deste Estado, é um outro […] desse esforço da criação de quadros para a formação daquelas elites sem as quais a democracia não pode conduzir-se e cai necessariamente na desagregação e na desordem dos espíritos.
Eis que agora, depois de dois anos de lutas e de espera, graças à tenacidade e à lucidez de homens do valor do meu eminente amigo e companheiro de governo, professor Flexa Ribeiro, de homens dos quadros do Estado e me permito citar apenas um e para resumir nele os demais, o professor Lamartine Oberg [2], e de homens da comunidade carioca, como aqueles que aqui hoje se encontram presentes, podemos lançar as bases da Escola Superior de Desenho Industrial, que visa, além de formar quadros para a utilização devida dos materiais e para a educação do gosto e do uso funcional de uma civilização industrial nascente, visa a uma alta tarefa, esta, sim, profundamente nacionalista.
A de imprimir ao povo brasileiro, através dos produtos industriais que ele consome, uma forma que lhe seja própria, uma forma ao mesmo tempo funcional e de sentido estético profundo, pois a obra de arte, sabe-o bem o homem moderno, não se mede apenas pelos quadros que ele prega na parede ou pelas esculturas que ele coloca nas praças, mas por tudo que ele usa, desde a navalha de barba até a gravata que ele põe em torno do pescoço. Desde as formas das máquinas de escrever, como deu exemplo ao mundo, a função, a compreensão pioneira desse industrial que por assim dizer revolucionou a estética do desenho industrial, que é o grupo Olivetti, na Itália, ou o grupo Fiat, na indústria automobilística.
Até esta compreensão de que podemos, como há pouco acentuava o Secretário de Educação, importar toda a vida know-how e técnica sem trazer a tudo isso uma contribuição que ouso esperar seja inovadora e surpreendente, como surpreendente e inovadora é sempre a contribuição da imaginação brasileira, se lhe põem ao alcance uma forma de se educar e de se exprimir.
Ousamos certa vez, quando sonhávamos com esta Escola, figurá-la no plano da civilização industrial que nasce no Brasil de importância comparável ao que foi a missão francesa para aqui trazida por D. João VI, na educação para a arte, na formação de uma arte brasileira.
Aqueles homens, como Grandjean de Montigny, como Debret, como tantos outros dos mais ilustres aos mais humildes serralheiros ou ferreiros que com eles vieram para o Brasil, formaram aqui o gosto e a técnica de que nasceram e que consumiram durante todo o Império e larga parte da República os nossos artistas e os nossos artífices, desde então.
Pode-se mesmo dizer que a grande influência francesa no Brasil, a cultura francesa que modelou em tão larga medida a formação de uma cultura brasileira, deve-se por um lado ao comércio de moda e de livros. mas por outro lado, e sobretudo, à vinda da missão francesa no começo do século passado.
Hoje, esta Escola, com os homens que para aqui irá trazer e com os homens que aqui irá formar, significa, no liminar da imagem industrial do Brasil, uma forma de dar melhores condições para que a admirável, espontânea e extraordinariamente fecundante capacidade da inteligência e da imaginação do trabalhador e do técnico brasileiro possa apropriar-se dessa técnica, para lançar em uma expressão que em português não traduz perfeitamente tudo que ela significa, o desenho industrial, isto é, a forma e a utilização devida dos materiais.
O sentido funcional dessa fabricação de materiais, e o sentido estético do uso desse material como elemento de civilização e de cultura de uma comunidade, tudo isto esta Escola visa a ser, tudo isto começa a ser no momento em que a Guanabara, em ação pioneira, funda a primeira Escola Superior de Desenho Industrial da América Latina.
Eis por que entendi que não poderia haver momento mais alto, nem mais expressivo, para marcar o início do terceiro ano de uma administração democrática e, neste sentido, revolucionária, na Guanabara, quanto o de lançar hoje o marco da formação de uma Escola que virá dar sentido e projeção duradoura ao esforço do trabalhador brasileiro, para aqui lançar as bases de uma civilização industrial e democrática. Muito obrigado a todos.
1. Carlos Flexa Ribeiro (1914-1991), então Secretário de Educação e Cultura da Guanabara e principal articulador, no governo do Estado, da criação da Esdi.
2. Lamartine Oberg (1918-2003), professor da fase inicial da Esdi, já pertencia ao quadro funcional do Estado.