Dia desses fiquei chocada na sala de aula. Não devia, mas fiquei. A tarefa era projetar uma capa, e os alunos deveriam trazer um livro encapado com a peça gráfica para que se pudesse ter uma noção de como ficaria. Não vou comentar a pobreza de cultura visual. Vamos pular essa parte, por ora.
Um aluno apareceu com uma agenda encapada. Como era um modelo de couro estofado, a peça ficou cheia de emendas e remendos, numa lamentável apresentação para alguém que faz um curso tão predominantemente visual. Perguntei porque ele não tinha usado um livro em vez da agenda. A resposta foi taxativa, dita sem nenhum pudor ou constrangimento: “porque na minha casa não tinha nenhum livro, só um monte de agendas“. Gente, esse menino faz parte da parcela privilegiadíssima da sociedade brasileira que tem acesso ao ensino superior. Ele mora num lugar onde não existe um único volume impresso! Sua intimidade com os livros era tão pouca que nem ocorreu ao futuro designer pegar um emprestado na biblioteca, mesmo que só para fazer o trabalho.
Sinceramente, nessas horas bate um desespero e dá vontade de chorar. Como é um universitário não tem nenhum livro em casa? Como vivem os pais desse projeto de cidadão, aptos a pagar uma mensalidade correspondente a quase 3 salários mínimos, mas incapazes de ler um primário paulo coelho que seja. Pelo menos um dicionário, ó Deus! Essa progressista família não vive no interior do sertão nordestino, o pai certamente não é cortador de cana. Provavelmente eles assinam TV a cabo e cada membro porta seu celular último modelo. Assim, não deve ser porque “os livros no Brasil são muito caros”, como reza a lenda (os sebos estão cheios de coisas legais a preço de pipoca).
Uma pesquisa realizada ano passado pelo CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola) na região metropolitana de São Paulo, revelou, pasmem, que pelo menos 20% dos universitários não lêem livros. Você pensa que essa notícia é ruim? Prepare-se para uma pior: dos que disseram que lêem, a Bíblia foi citada como o livro mais influente. Duvido que eles leiam realmente a Bíblia, pois a linguagem é muito sofisticada e de difícil compreensão para não iniciados. Acredito que ela foi citada só porque é o livro mais conhecido, o primeiro que vem à mente de quem não quer passar vergonha. E o segundo livro mais influente? Vocês não vão acreditar, mas é ninguém menos que “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry. Sim, aquele mesmo das misses de antigamente!
Gente, como é que nossos futuros profissionais vão desenvolver o senso crítico com essas referências bibliográficas? Como vão se tornar cidadãos completos, com capacidade para se indignar com injustiças? Como vão adquirir cultura para se tornarem pessoas mais ricas e interessantes? Como a história do pensamento vai evoluir, com tão poucos pensantes?
Desse povo, 96% usam freqüentemente a Internet. Agora já deu para entender porque essa galera gosta de usar aquela língua esquisita para se comunicar nos chats e sites de relacionamento; simplesmente porque desconhecem os rudimentos do português.
Pelo que tenho visto em sala de aula, acontece algo muito parecido com os designers, mas com um agravante: além de muitos não saberem escrever, há uma parcela significativa que também carece de cultura visual (visitas freqüentes em livrarias e bancas de revistas, mesmo que só para olhar, já resolveriam grande parte do problema).
Essa falta de cultura, de pai e de mãe, tem provocado comportamentos medievais dignos da Idade das Trevas (não por acaso, uma época em que ninguém lia). No limite, faz com que jovens de “boa família” roubem e espanquem pessoas que consideram inferiores. Há pouco mais de 10 anos, um índio foi morto por jovens e promissores estudantes que tiveram a desfaçatez de se justificarem dizendo que achavam se tratar de um mendigo. A vítima da semana passada é uma empregada doméstica, alegadamente confundida com uma prostituta.
Sinceramente, dispenso a convivência com essa nobreza intelectual; se tiver que escolher, escolho sem titubear mendigos e prostitutas. Mendigos têm muitas histórias interessantes e, convém lembrar, a Bruna Surfistinha escreveu dois livros.
Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br