Se tem uma coisa que eu adoro é conversar com gente inteligente. Mas o que mais me encanta mesmo é quando a pessoa usa essa inteligência para destruir meus argumentos, duvidar das minhas certezas, provocar a reavaliação dos meus conceitos.
Pois foi exatamente isso que aconteceu numa de minhas aulas de introdução à biônica. Estava confortavelmente discutindo sobre a definição de design que forjei junto com minha equipe em uma aula do doutorado. Depois de estudar várias referências (sim, nós analisamos também aquela que diz que design é sinônimo de projeto entre outras dezenas), concluímos, após exaustiva discussão, que o design se sustenta sob o tripé projeto–conceito–estética. Desde então tenho usado essa definição, mesmo sabendo que ela não é consenso e gera polêmica. Não a apresento como “a verdade”. É apenas, do meu ponto de vista, a definição com a qual me senti mais confortável em defender até hoje.
Vejamos: o projeto permite a produção em escala industrial; o conceito explica a função primária do objeto, o significado, a escolha dos materiais, formas e cores, o ciclo de vida, a maneira como ele vai interagir com o ser humano, a ergonomia, a usabilidade; a estética é o que o torna atraente, o que encanta e faz vender.
Foi aí que os alunos perguntaram: mas e a função, não é o mais importante no design? Sim, a função é muito importante, mas, como já disse, ela está embutida no conceito. Para eles, a estética é que deveria estar implícita no conceito. Quem deveria sustentar o outro pé deveria ser a função. A sugestão é que o modelo fosse mudado para projeto–conceito–função.
Retruquei que hoje em dia, dadas as inúmeras opções de compra, o desempenho e a facilidade de uso de objetos concorrentes são mais ou menos equivalentes. As pessoas não escolhem uma televisão ou um carro pela sua função estrita, mas pela sua função ampla, que inclui o simbolismo. A função estrita (o uso primário do objeto) continua fundamental; ninguém quer um telefone que não funcione; mas não é mais o fator que decide a compra.
Há objetos de design, inclusive, cuja função é apenas significar; é o caso das jóias e de alguns acessórios, por exemplo. O peso da função no projeto do objeto dependeria então do contexto onde (e por quem) ele será usado. Por isso é que, para mim, a função faz parte do conceito. Apenas para evitar mal entendidos, vou repetir: não estou dizendo que a função primária não é importante, mas que o peso da funcionalidade em um objeto depende de como ele foi conceituado. Para deixar bem claro, coloco a função simbólica nos domínios da estética e deixo a função primária (usabilidade) no eixo do conceito.
Então o Daniel me desafiou: ok, algumas aquisições privilegiam o significado e a estética na decisão de compra. Mas há outras onde a aparência nem é considerada. Se eu vou adquirir um tanque de guerra ou um míssil, por exemplo, estou pouco me importando se o negócio é feio ou bonito. O desempenho dele é mais importante que tudo.
É mesmo, o rapaz tinha toda razão. Fui para casa matutando, onde é que está o furo na minha linha de raciocínio? Se eu vou comprar um robô ou uma máquina industrial, não escolho pela beleza, mas pelas características técnicas. Será que eu deveria rever minha definição de design?
Foi então que, depois de uma noite mal dormida de tanto queimar os miolos, cheguei a uma conclusão que me satisfez. Olha só.
Quando um objeto é concebido pensando-se apenas e tão somente na sua função primária, sem considerar sua função simbólica (estética) isso não é design. É engenharia.
Justamente o que separa o design da engenharia é essa perninha da estética. O projeto e o conceito, a engenharia também tem, posso dizer com toda certeza, inclusive, porque foi lá que a ergonomia nasceu. Na estética é que mora a diferença entre a engenharia e o design — a engenharia não perde tempo em encantar; o foco do trabalho é a função primária do objeto.
No final das contas, foi um ótimo exercício de auto-conhecimento. Finalmente descobri que foi exatamente esse o motivo que me fez migrar da engenharia para o design. Eu adorava a engenharia, faria tudo de novo, mas sentia falta da estética, do simbólico.
É isso, então. Na engenharia, a forma segue a função. No design, a forma segue a intenção.
Obrigada, Daniel.
Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br