Há um tempos assisti pela televisão a um trecho de um programa em que eram mostradas cenas filmadas, em Paris, no período logo após a evacuação das tropas alemãs, com a libertação da capital francesa pelas forças da Resistência. Como telespectadora bissexta, não sei precisar o canal e sequer a data dessa transmissão. O trecho assistido mostrava o ataque de franceses a mulheres compatriotas colaboracionistas com as forças nazistas. Esse, o pecado delas. Em plena rua o povaréu, tomado por uma exaltação demoníaca, expunha essas mulheres à degradação pública por haverem tido envolvimento afetivo e/ou sexual com membros das forças invasoras. Será que homem nenhum, só mulheres, experimentou algum tipo de intercurso com os alemães? Então, onde estiveram ocultos, durante o governo Pétain, os demais franceses?
Nas cenas exibidas, em meio à gritaria e às gargalhadas doentias, grupos de mulheres manietadas eram agredidas, surradas, jogadas ao chão, xingadas, cuspidas. Para estigmatizá-las, a turba passou a raspar-lhes a cabeça – símbolo da rejeição social, procedimento historicamente repetido por forças de opressão. Dessas cenas hediondas eu perscrutava os rostos e em especial os olhos das condenadas focalizadas. Li em seus olhares um turbilhão de emoções: medo, vergonha, sim, porém, sobretudo, estarreci mento, aturdimento, como se surpreendidas pela reação sofrida. Associei essas cenas às em que a Rainha de Copas, personagem da obra de Lewis Carol Alice no País da Maravilhas, como epítome do nonsense, urrava: “Cortem-lhe a cabeça! Primeiro a sentença, depois o julgamento!“.
Senti um arrepio de horror. De certo, modo senti-me na pele das mulheres execradas por compatriotas após a queda do poder até então vigente. Tal como elas, eu sou conivente, sujeito e objeto, de um sistema de ensino e pesquisa superado e falimentar. Terei eu um dia a cabeça raspada e serei degradada socialmente por haver sido, nos devidos termos, uma colaboracionista? A alternativa é ser partisan, atrás de portas fechadas na sala de aula, em regime de professor horista? Que fazer?
Meu percurso profissional possibilita uma visão critica da pesquisa, do ensino e do exercício profissional em design. Quando chegarão e quais serão as “tropas libertadoras da Resistência” (curioso o nome, não?), via CAPES, MEC, CNE? O que será entendido como o bem vitorioso? Angustiada, acompanho o inexpressivo avanço de questões basilares do design, que orbitam já há décadas em todos os fóruns de discussão, seja nos âmbitos inter/intra-institucionais e/ou pessoais.
Com a legislação ora em vigor, os fatos recentes são muito mais preocupantes. É espantosa a fecundidade das instituições de ensino superior, em especial as que pertencem a entidades mantenedoras. Na área do Design pululam arremedos apressados de cursos seqüenciais, brotam, qual tiririca, improvisados e inconsistentes cursos superiores (?!). Em contraposição, ainda é rarefeita a implantação de cursos de pós-graduação stríctu-sensu em Design no Brasil.
Cabe ressaltar o valor da pesquisa para o avanço do conhecimento e a definição de área de atuação profissional, seja ela qual for, e a meu ver, em especial para o Design brasileiro. Como instituição gestora e supervisora da política oficial do ensino superior no país, a CAPES deixa claro os pesos da produção científica e da titulação docente em seus critérios de avaliação de curso.
Lamento constatar quão pouco, em geral, os dirigentes dos cursos de Design aprenderam com a história da institucionalização dessa atividade no país. Teimam em repetir os equívocos já evidenciados, ad nauseam, e em não acatar as recomendações consagradas em rigorosas pesquisas, sobejamente difundidas, sobre o ensino do Design no país. Já há produção científica na área suficiente para fundamentar a criação ou a reestruturação de cursos em bases consistentes, coerentes e adequadas.
Na incessante nova leva de cursos na área, começam a surgir propostas de cursos de graduação em Design, nas várias habilitações.
O Design gera a interface do ser humano com o seu ecossistema mais próximo. A questão fulcral é tornar o ambiente construído significativo, inteligível, seguro, confortável, adequado e exeqüível. O Design é centrado no ser humano enfocando a sua relação com o ambiente construído em diversos níveis e tipos de interesse: como investidor, fornecedor, empregador, empregado, usuário, membro da comunidade, visitante, turista. Integram o desenvolvimento dos projetos de Design, em especial os institucionais para multiusuários, as referências culturais, os efeitos de sentido, as recomendações ergonômicas, as tecnologias disponíveis, o entorno. Assim, numa abordagem holística, o projeto de Design contempla o sistema alvo,
compreendendo seus subsistemas e sistemas paralelos, inserido num ecossistema complexo.
O Design jamais se trata de um simples enfeitar
Por ser uma atividade pouco profissionalizada, ela apresenta-se como uma terra de ninguém, e, portanto de todos. Em um primeiro momento, procuro divisar o que virão a ser esses cursos de Design. A serviço de que e de quem estão sendo criados? Será mais uma falácia no cenário do ensino superior brasileiro? Serão meras fachadas para engordar cofres de sociedades mantenedoras iludindo alunos? Ou virão para saciar vaidades de projetistas frustrados, ou para elevar o status acadêmico do profissional decorador? Para que mundo a instituição estará preparando os seus alunos? Qual o tipo e a qualidade de intervenção pretendida do profissional egresso da instituição?
Quando se monta um curso de nível superior é indispensável o amadurecimento de um projeto educacional e pedagógico que possa fornecer as bases sólidas para os 35 anos futuros de exercício profissional. É, sem dúvida, um desafio temerário – tomar decisões cujos acertos, erros e conseqüências só se evidenciarão em anos e mesmo décadas posteriores. Muito mais do que ensinar um modo de fazer algo, a instituição de ensino e pesquisa determina a assunção da consciência de cidadania de todos os seus integrantes, o desenvolvimento do pensamento e da atuação social política, crítica, inovadora por meio do trabalho. A IES provoca a reflexão sobre os inúmeros desdobramentos decorrentes das produções de seus integrantes frente à constante transformação das condições fenomênicas. Nessa missão, a instituição tem também seus compromissos com a comunidade extramuros, através das atividades de extensão.
Aprender algum mister não demanda dois, quatro ou seis anos. Requer, sim, uma vida inteira. A atualização profissional é um processo incessante. O curso de graduação assenta os pilares iniciais de enfoque da atividade e oferece os instrumentos mínimos para o desenvolvimento de um fazer fundamentado e validado. Valores éticos perduram, enquanto, rapidamente, tecnologias evoluem, materiais tornam-se obsoletos, tendências formais são superadas. Nas áreas do conhecimento das ciências, das artes e das tecnologias faz-se necessária uma base sólida de conhecimentos que enseje a crítica, a revisão, a evolução. Mormente quando, como no caso do Design no Brasil, a reflexão e a pesquisa ainda são pouco difundidas.
Que matérias, disciplinas e seus programas serão os mais adequados para uma determinada realidade? Melhor será criar condições para transformação e superação dessa mesma realidade dentro das possibilidades e restrições? A postura teleológica é inerente à educação, ao ensino e à pesquisa o seu alvo é futuro.
Auscultar o setor potencial tomador de serviços, identificar peculiaridades em amplo espectro; localização geográfica, clima, demanda reprimida, hábitos, valores, costumes, acesso à matéria-prima e a insumos etc. A partir de um levantamento preliminar e de definição de um projeto de curso poderá começar a reflexão sobre o perfil do curso em pauta. Já temos exemplos demais de quanto é nefasta a importação acrítica de currículos. Já há desempregados e subempregados em excesso para submetermos os incautos alunos a perversas e mesquinhas conveniências administrativas, financeiras institucionais e pessoais.
A visão clara de mundo, o projeto de um porvir, a consistência ideológica e filosófica são pré-requisitos para a elaboração de qualquer projeto pedagógico que se pretenda sério.
A síntese dessa reflexão espelha-se tanto no esboço do currículo e da grade curricular decorrente, como nos critérios para a formação do corpo docente: a árdua tarefa de garimpo de pessoas que formem um grupo em que a individualidade preservada comungue o ideário educacional proposto. A articulação de pontos de vista diferentes enseja o enriquecimento do diálogo, obsta a esquizofrênica coexistência de fragmentos incompatíveis, conduz a um trabalho criativo e produtivo.
Cabe sempre destacar que o ensino é indissociável da pesquisa. Na composição do corpo docente, já devem ser identificadas linhas de pesquisa que poderão vir a ser desenvolvidas na instituição, envolvendo professores e alunos, num processo viável e estimulante. O educador ao planejar um curso de graduação em nível superior terá que enfrentar e administrar pressões de diversas naturezas. Não é, nunca foi e nem será fácil ou ameno compatibilizar interesses financeiros, vaidades, competências, limitações para viabilizar a instalação de tal curso. A superação de restrições circunstanciais demanda um esforço sem dúvida compensador. Aquele que decidir aceitar uma tarefa de tal magnitude deve possuir flexibilidade suficiente para lidar com a alteridade e a injunção de circunstâncias e também, firmeza e convicção bastantes para não abdicar dos valores e dos propósitos educacionais fundamentais. Afinal a missão do educador é preparar sujeitos para atenderem o imperativo de construir um mundo mais justo, solidário e harmonioso.
Esse educador, a meu ver, não corre o risco de, um dia, vir a ter a sua cabeça raspada. Ele vive a liberdade.
Versão revista da original publicada na Revista da Associação de Designers Gráficos, São Paulo, v. 21, p. 58-59, 2001.