Por Valmir Perez
Quando paramos para pensar sobre o design de iluminação, começam surgir algumas perguntas interessantes, tais como: um projeto de iluminação é uma obra artística? Os designers de iluminação são artistas? Quando alguma coisa é arte e quando é design? Essas perguntas não são formuladas apenas pelos profissionais da iluminação contemporâneos e estudantes da área, mas por todos aqueles que se vêem envolvidos com design e arte no mundo todo.
Já no início do século XX, quando da criação da Bauhaus[1], na Alemanha, esse tema gerava polêmica em vários círculos de debates, tanto acadêmicos quanto puramente artísticos. O que a Bauhaus trouxe à tona naquela época foram discussões em torno do valor artístico de uma obra projetada racionalmente e até que ponto as chamadas “artes aplicadas” poderiam reivindicar o status de “arte”, dentro do conceito clássico.
A mim, particularmente, essa discussão não tem sentido, pois acredito que a arte não pode ser encaixada dentro de parâmetros absolutamente rígidos. Foram esses mesmos preconceitos que levaram os impressionistas a serem espezinhados em suas primeiras tentativas de terem suas obras reconhecidas pelo público francês em finais do século XIX. Aqui no Brasil, anos depois, o movimento modernista sofreria quase os mesmos ataques, de uma elite e da população culta extremamente iludida com a visão clássica européia.
Se pesquisarmos com mais profundidade sobre o assunto, entenderemos que mesmo um projeto encomendado, seja ele de pintura, escultura, iluminação, etc., pode se tornar uma espetacular demonstração artística do espírito humano. Muitos artistas plásticos, designers e arquitetos deixaram suas marcas em murais, edifícios, e até mesmo em cidades inteiras, e nem por isso essas obras deixaram de ser consideradas grandes obras de arte. Olhando também através desse prisma, achar que a Capela Sistina de Michelangelo não é arte apenas porque foi projetada e encomendada pelo Papa é um absurdo. Da Vinci pintou a maioria de suas obras por encomenda e nem por isso se trata, como dizem muitos, apenas de design.
Outra discussão que permeava as atividades da Bauhaus era a de que essa escola procurava levar conceitos artísticos a produtos industrializados, ou seja, trazer beleza aos produtos fabricados em linhas de produção, o que para alguns até hoje é um absurdo. Mas essas mesmas pessoas acabam comprando gravuras de artistas que as fabricam em série, como nas fábricas. Com processos parecidos aos da indústria de objetos em série.
Sabemos, porém, que nem toda obra de um artista se transforma em obra de arte, assim como nem toda obra de design pode requerer esse status. Qual a diferença fundamental então entre uma obra artística e as outras? Esse assunto é um dos mais complexos e o que causa mais polêmicas. Isso acontece porque o que é considerado uma obra de arte em determinado momento histórico, em determinadas condições político-sociais, de cultura regional, nacional, etc., pode ser considerado até mesmo um insulto, ou uma provocação barata em outro momento. Para dar um exemplo, posso citar a exposição de “Arte Degenerada”, patrocinada pelo Partido Nacional Socialista Alemão, em 1937.
“Com o evento, os nazistas pretendiam desmoralizar a arte moderna e seus mais significativos nomes como Kandinsky, Klee e Picasso. Foram expostas 650 obras entre pinturas, gravuras e esculturas, selecionadas entre os mais de 5 mil trabalhos confiscados dos principais museus e galerias pelo Ministério da Propaganda de Hitler. A arte moderna estava sendo considerada perniciosa à “estética” partidária, “fruto da insanidade, imprudência, inépcia e completa degeneração”, como anunciava em seu discurso de inauguração o nazista Adolf Ziegler.”[2]
Assim, uma das formas de analisarmos e entendermos o que significa “arte” em nossa sociedade é também tentarmos compreender os mecanismos ocultos que se insinuam sorrateiramente nela e por ela.
Mas a arte não é fruto apenas desse “entendimento” racional de seu contexto em nossas vidas e sociedades, mas, e acima de tudo, a sensação de beleza, completude e harmonia que uma grande obra traz à tona e nos excita, nos hipnotiza e contagia. Isso também pode ser realizado pelo design, daí, a meu ver, a inócua discussão que existe entre artistas e designers para saber quem é o melhor, o mais capaz – quem realmente pode criar o que insistimos chamar apenas de “arte”.
Vale a pena o estudo das artes?
Outra questão que se debate ultimamente é a da validade de se estudar a arte ou da pesquisa pictórica pelos designers de iluminação. Será mesmo que existe alguma importância em se estudar a arte da pintura em nossa atividade? A meu ver sim, mas com o cuidado de não abstrairmos demais e darmos uma importância maior do que realmente deveríamos. Estudar as artes e seus movimentos não é importante apenas para designers de iluminação, mas para todo aquele que deseja evoluir sua maneira de enxergar o mundo, de refletir mais seriamente sobre as questões de sensibilidade, do mundo abstrato da beleza e da harmonia.
Quando fazemos paralelos entre a arte pictórica e a iluminação cênica e arquitetural, devemos refletir sobre os limites dessas comparações. A pintura, geralmente, se dá em superfícies bidimensionais, enquanto a iluminação se dá em ambientes tridimensionais e seus efeitos atingem elementos em movimento.
Sendo assim, sabemos, de antemão, que qualquer pesquisa pictórica e visual sobre suportes bidimensionais não poderá oferecer todas as soluções para a iluminação das cenas, pois a iluminação não deve se resumir apenas na representação de espaços e situações, mas, acima de tudo, integrar-se ao fluxo das cenas, dos ambientes das temáticas dos espaços e das situações. É possível que designers de iluminação utilizem as artes pictóricas como elementos de pesquisa, mas a coisa é muito mais complicada quando se deseja realmente criar uma luz viva, que não signifique apenas iluminar ambientes e cenas.
Na criação de iluminação, os designers devem também considerar a luz como parte da cena, e não como algo mais que é somado ao conjunto, mas que está separado do todo.
Ao criar a luz para uma ou mais cenas, ou para diferentes espaços, os designers não podem apenas se servir de propósitos artificiais, de imitação natural, ou de imitação da intenção. Para chegar a esse nível de criação, os designers devem, acima de tudo, conhecer as intenções profundas e subjetivas dessas cenas, das correntes de vida que “atuam” nesses espaços e, acima de tudo, aprofundar-se em conhecer o todo no qual elas se inserem, o contexto total como obra de relações e expressões complexas. Aí entra, além do saber técnico, a intuição e o conhecimento estético desse todo. Através desse trabalho de criação artística é possível integrar a luz na obra.
Obviamente, para isso, é preciso um design, um projeto, porém, não um design que se baseie apenas em resoluções prontas, retiradas de testes simulativos de computador, mas um design em aberto, que crie condições para que a luz estabeleça diálogo com os elementos que compõem esses universos, no momento em que ambos se defrontam.
Sendo assim, podemos concluir que luz, cenas, espaços, temáticas, etc., não são absolutamente elementos separados, mas que interagem mutuamente, num relacionamento íntimo de expressão. A criação de iluminação, nesse sentido, pode utilizar os elementos visuais e pictóricos sem, no entanto, esquecer as peças fundamentais que compõem essa criação, ou seja, os limites de até onde a pesquisa pictórica para o desenvolvimento de poéticas criativas pode chegar, em relação à própria expressividade das cenas como um todo.
O artista e suas ferramentas de expressão
O que se percebe, então, é uma estreita ligação entre a iluminação de palco e outras formas de expressão artística, sendo o universo da iluminação, ou seja, equipamentos, filtros, estruturas, etc., ferramentas e materiais que o designer utiliza para expressar poéticas, estéticas, dentro de um todo orgânico que são os espetáculos, os espaços, os objetos, etc.
Na pintura, o artista se utiliza de pincéis, tintas, solventes, vernizes, palhetas, etc. sobre um suporte qualquer. Já na iluminação, os suportes são os próprios palcos, espaços arquitetônicos, jardins, etc., mais os elementos que compõem essas “cenas” fictícias ou de cotidiano humano. Os pincéis são as luminárias, os instrumentos[3]; as tintas, as suas luzes colorizadas através de filtros, lâmpadas coloridas; seus brilhos, suas intensidades – cujo controle geralmente é feito nas mesas (consoles) de iluminação, nos sistemas de automação; suas sombras nos cenários, nos elementos, nos atores, nas paredes, objetos, e tudo o mais que possa ser utilizado para criar efeitos visuais estáticos e dinâmicos com a luz.
As artes têm em comum alguns aspectos que se pode considerar fazendo parte de um mesmo universo, pois, “A unidade é manifesta nas qualidades estruturais básicas compartilhadas universalmente pelas diferentes modalidades dos sentidos”. (ARNHEIN – 1989)[4]. E que: “… o essencial no sensório-perceptivo não é o que separa os sentidos um do outro, mas o que os une; une-os entre si; une-os à experiência total em nós próprios (inclusive a experiência não-sensória); une-os, finalmente, à totalidade do mundo externo, que aí está para ser vivenciado”. HORNBOSTEL (1939)[5]
Observa-se, então, que a iluminação interage de maneira bastante eficiente na determinação da expressão artística de qualquer obra, porém, não determina sozinha toda a expressividade; complementa-a, mas sua complementação pode ser igualada à da tinta sobre o suporte. Sua complementação é mais plástica nos sentidos pictórico, espacial.
Por outro lado, a iluminação também pode atuar como determinadora do universo temporal nos espetáculos teatrais e até mesmo em residências e eventos diversos, onde suas entradas e saídas determinam geralmente as trocas de cenas, de mundos, de tempos, de espaços, de climas emocionais. Na pintura, a iluminação favorece um tempo “estático”, eterno, congelado em sua dimensão plástica, enquanto no palco ou na arquitetura, com “atuação” controlada, favorece um tempo “dinâmico”, na sua dimensão vital, mutante, de ação transformadora desse tempo.
Qualidades da luz
Ao se estudar a complexidade do design de iluminação, percebe-se a importância do conhecimento das principais propriedades – físicas e psicológicas da luz – para o desencadeamento de soluções, da mesma forma que artistas da pintura já percebiam isso há centenas, senão milhares de anos. Não é à toa que mestres como Da Vinci e Michelangelo não eram apenas pintores, mas cientistas, pesquisadores da natureza. Eles conheciam a importância do estudo das luzes, da anatomia, da biologia, etc.
Esses artistas representaram o oposto ao ser humano especializado. Mais tarde, todas as atividades que eles desenvolviam em sinergia foram separadas pelas academias para facilitar a transferência de conhecimento e a pesquisa. Parece que atualmente vivemos uma reviravolta desse conceito de experiência de aprendizado e pesquisa, através do que se chama atualmente nas universidades de muitidisciplinaridade, que é o trabalho conjunto de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento.
As propriedades físicas afetam o sistema visual, químico, biológico dos seres humanos e, dessa forma, as funções psicológicas, os sentimentos e as emoções. Entender as propriedades físicas auxilia os lighting designers a buscar efeitos subjetivos com um grau maior de consciência. Além disso, o conhecimento das leis de aplicação da reflexão, refração e absorção são de grande valia no dia-a-dia desses profissionais, que utilizam esses conceitos tanto teoricamente como praticamente.
Segundo WILLIANS (2003)[6] as qualidades básicas da luz são: Intensidade, forma, cor, direção e movimento. Pode-se também adicionar mais uma: o ângulo de inclinação, que é responsável dentro dos palcos e na arquitetura pela modelagem dos elementos e de suas sombras.
Ainda de acordo com o autor: “Quase toda imagem visual pode ser descrita, discutida e analisada nesses termos – ambas física e psicologicamente. Existe um excelente exercício de aula que sempre começa com a análise da reprodução de pinturas dos antigos Mestres”. “O estudante aprende a discutir as qualidades da luz utilizando termos tais como intensidade, brilho, direção, cor, forma e distribuição. Esses termos são utilizados para discutir a pintura de um detalhe de uma área pequena para o todo, ou para outras. Além disso, a pintura como um todo é discutida em respeito a todos os impactos da luz, estilo, modo, composição, conteúdo emocional e outras qualidades”. (WILLIANS, 2003).[7]
Iluminação de palco – conhecer e sentir
O design de iluminação, como qualquer outra manifestação artística, necessita de sua materialização, de sua extrinsecação em nosso universo material para se tornar[-se] verdadeiramente arte sentida, explorada pelos sentidos e pelas emoções humanas. Ao se pensar na iluminação apenas como arte de suporte para a manifestação de artes mais complexas, como o teatro, a dança, a arquitetura, etc., pode-se também pensar o mesmo das outras artes que a integram, como a arte da interpretação teatral, da interpretação coreográfica, da interpretação musical tocada e cantada, da cenografia, da decoração, etc.
Em vez disso, pode-se pensar na iluminação como materialização de sentidos e sentimentos e nessa condição apreende-se que: “… o ato artístico é todo extrinsecação, e o corpo da obra de arte é toda a realidade dela. A pintura não é nada diversa de uma superfície colorida, a estátua nada diversa do bronze fundido, a poesia nada diversa de uma série de palavras, a música nada diversa de uma sucessão rítmica de sons e a dança nada diversa de corpos em movimento. O corpo físico da obra de arte não é um instrumento mais ou menos necessário para comunicar uma imagem interior, e nem ao menos é o indispensável aspecto externo de uma realidade interna que, mais profunda e escondida, viva dentro dele e dentro dele se deva colher e penetrar, ou necessária manifestação física de uma realidade superior ou ulterior que se patenteie através dele e para ele aluda além de si. Ele basta a si mesmo e constitui a totalidade da arte”. (PAREYSON, 1989)[8]
A compreensão sensível e de expressividade nos palcos e nos ambientes diversos passa, primeiramente, pela necessidade de compreensão visual, física mesmo, entendida em seus aspectos formais para, posteriormente, afetar os outros caminhos de entendimento do espectador, como na pintura, que exige primeiramente a contemplação de suas formas objetivas, materiais, e, posteriormente, a introspecção e conseqüentemente a reação intuitiva e intelectual subjetiva do observador, pois:
“Dizer que, na obra de arte o corpo é tudo, não significa negar-lhe a espiritualidade, mas apenas afirmar que esta espiritualidade deve ser vista no seu mesmo aspecto físico. Todas as tentativas de unificar ou mediar a espiritualidade e a fisicidade da obra de arte, deixando-as distintas, conservam aberta a possibilidade de separá-las, e, por isso, a alternativa de negar uma em favor da outra, isto é, de volatilizar a arte no capricho ou enrijecê-la na técnica.
Considerar a obra de arte como tal significa, pelo contrário, tê-la diante de si como uma coisa, e, ao mesmo tempo, nela saber ver um mundo; fazer falar com sentidos espirituais o seu próprio aspecto sensível; não tanto buscar o significado de sua realidade física como, antes, saber considerar esta mesma realidade física como significado: já que nesta não se trata de distinguir interno e externo, alma espiritual e corpo físico, pura imagem e intermediário sensível, realidade oculta e invólucro exterior, mas de encontrar a coincidência de espiritualidade e fisicidade”. (PAREYSON, 1989)[9]
Artistas ou designers, somos todos aqueles que se preocupam com a beleza e com a harmonia. Diferenças entre design e arte, talvez não existam, talvez existam apenas visões distorcidas da mesma realidade. Talvez alguém, um dia, tenha olhado essas coisas através de um prisma, ou de um caleidoscópio, e separado em muitas partes o que sempre foi um todo integrado. Talvez tudo seja uma coisa só, separada apenas por nossos preconceitos. Talvez…
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[1] Escola de design, artes plásticas e arquitetura, fundada em 1919 por Walter Gropius, em Weimar, Alemanha. Considerada a mais importante expressão do modernismo e uma das primeiras escolas de design do mundo.
[2] Retirado do artigo de Yeda Arouch – http://yedaarouche.arteblog.com.br/17785/Obras-inimigas-arte-degenerada/
[3] Optei pelo termo “instrumentos” para designar os equipamentos convencionais e não-convencionais para projeção de efeitos luminosos. Esse termo também é abusivamente utilizado pelos designers americanos em relação aos equipamentos de iluminação cênica.
[4] ARNHEIN, R. Intuição e intelecto na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.68
[5] HORNBOSTEL, E. M. V. Die Einheit der Sinne – Melos, Zitschrift für Musik. Nova York: Harcourt Brace, 1939. vol 4, 1925, pp. 290-7. tradução para o inglês de Willis D. Ellis
[6] Op. Cit .Tradução livre
[7] Op. Cit. Tradução livre
[8] PAREYSON, L. Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 119
[9] PAREYSON, L. Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 120 – 121
Fonte: Revista Lume Arquitetura Ano V no. 30 – pags. 54 a 58