All posts by Lígia Fascioni

Lígia Fascioni é engenheira eletricista, especialista em marketing, mestre em automação e controle industrial e doutora em engenharia de produção na área de gestão integrada do design. Publicou "Quem sua empresa pensa que é?" (2006), "O design do designer"(2007), "Atitude profissional: dicas para quem está começando" (2009) e "DNA Empresarial" (2010). Atua como consultora empresarial e palestrante. Ministra disciplinas em cursos de graduação e pós-graduação (MBA) em marketing, inovação e design. Mantém o site www.ligiafascioni.com.br e www.atitudepro.com.br. É colunista do portal Acontecendoaqui.com.br e colabora com diversos sites e blogs sobre marketing e design.

Por favor, não responda o questionário!

Eis que o final de ano se aproxima e a minha caixa fica lotada de pedidos de colaboração para responder pesquisas variadas. Em geral, são pessoas que estão fazendo algum trabalho de conclusão de curso, dissertação ou tese. Em alguns casos, estão querendo subsídios para desenvolver um novo produto. Como sei o desespero que é conseguir voluntários de boa vontade para colaborar nessas horas difíceis, sempre reservo um tempinho para isso.

 

Mas nunca deixo de me surpreender com a falta de gentileza e bom senso desses pesquisadores de ocasião. Eles querem que a gente ajude, mas não facilitam a nossa vida em nada. Quem tem interesse que o questionário seja respondido que se mexa e descubra um jeito de tornar a tarefa menos ingrata e trabalhosa para os solidários colegas.

 

Para mim, o cúmulo da falta de educação e sensibilidade é a criatura simplesmente anexar um arquivo em formato Word e obrigar o pobre voluntário a desanexá-lo, editá-lo aos trancos e barrancos (os espaçamentos geralmente se perdem e aparecem erros de formatação) e depois anexá-lo novamente para enviar de volta. Troféu “sem noção” é pouco. Responder a questionários é muito chato, mas se dar a esse trabalhão todo é muito pior.

 

Vou dar uma dica sobre como fiz para obter as 476 entrevistas virtuais que fundamentaram a minha tese de doutorado sem ter que cortar relações definitivamente com parentes, amigos e conhecidos. Pode ser útil para quem está a ponto de se tornar um pária da sociedade por sua chatice sem fim em convencer toda a sua rede de contatos a responder a pesquisa.

 

Primeiro, publique o seu questionário em uma página na Internet. Não sabe? Azar o seu. Aprenda ou consiga alguém para fazê-lo. Isso é fundamental, pois você não precisa mais anexar nada, é só enviar um link para a alma caridosa clicar. A outra vantagem desse meio é que, usando as armas certas, você consegue que as respostas sejam enviadas automaticamente para um endereço de e-mail criado especialmente para esse fim, o que não mistura os resultados com a sua correspondência normal.

 

Lembre-se de que o questionário não precisa (nem deve) ter frescuras e convém que seja limpo e fácil de preencher (princípio básico do design, lembra?). Ah, e não se esqueça de criar uma página de agradecimento, que tem duas funções: agradecer realmente a disposição e permitir que a pessoa se certifique que suas respostas foram enviadas com sucesso.

 

Outra coisa que bolei e deu muito certo, apesar de bem simples, foi o seguinte: como, no meu caso, as entrevistas eram separadas por empresas, criei um código para cada pessoa para quem eu mandava a mensagem. Era assim: eu falava com o responsável por cada empresa (eram 19) e pedia, por exemplo, o endereço de 3 clientes, 3 colaboradores e 3 fornecedores. As mensagens eram personalizadas (essa regra é de ouro!) e explicavam que o endereço havia sido fornecido por fulano (da empresa tal) e que o sigilo das respostas era garantido pelo tal código. Assim, a pessoa entrava na página, digitava o código e respondia rapidamente as questões. Olha só um exemplo: xc2 (onde x é a empresa, c é de cliente e 2 é o número do cliente). Para que servia isso? Ora, se eu precisava de 10 entrevistas de clientes de uma empresa, sabia que já tinha recebido 9 e que tinha que arranjar outro endereço, já que um dos nomes fornecidos não se dispôs a responder (e eu sabia exatamente que era o de número 5, pois havia uma tabela com os nomes e respectivos códigos). Ficava fácil de conferir quem tinha respondido o quê, porém, garantindo a privacidade nas respostas. Assim, você não corre o risco de ficar infernizando a vida de quem já colaborou. Dá um trabalho dos diabos, mas para você, não para seus amigos do bem.

 

Ah, e outra coisa que muita gente se esquece, mas é o básico da boa educação: oferecer aos voluntários uma cópia do trabalho concluído, afinal, sem eles, nada teria sido feito.

 

Pois é. Parece tão óbvio. Por que então continuo a receber avalanches de arquivos anexados que depois nunca mais dão notícias, se o bom senso (assim como o bom gosto) é uma das poucas coisas que todo mundo acredita já ter o suficiente desde que nasceu?

 

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

 

Gente colorida


Admiro o trabalho da filósofa Márcia Tiburi há anos, desde que comecei a assistir às suas palestras no programa Café Filosófico, da TV Cultura. Por isso, fiquei muito feliz quando ela passou a integrar o time de damas do Saia Justa, da GNT. Infelizmente, não assisto ao programa tanto quanto gostaria (não tenho TV a cabo), mas toda vez que me hospedo em um hotel com esse recurso, não deixo de acompanhar o papo da mulherada.

Há algum tempo, o shopping Iguatemi promoveu no seu vão central um Saia Justa ao vivo aqui em Florianópolis, e não pude deixar de assistir. Gostei de tudo, mas fui para casa com uma frase da Márcia na cabeça. Falando sobre compras, moda e roupas, ela declarou que há anos se veste de preto porque para usar outras cores é preciso escolher, combinar, harmonizar. Tem que pensar muito, tomar decisões difíceis. Ela acha que usar roupa colorida não é para qualquer um. Está certa a moça.

Escolher preto é confortável, pois desconheço uma mulher que não fique bem com essa cor (ou não-cor, como queiram). Preto não deixa aparecer sujeira, é prático, elegante, afina a silhueta e dá um ar de discrição misteriosa, principalmente se a bela em questão caprichar na maquiagem.

Mas será que vale a pena apelar para a monocromia em nome do conforto e da elegância fácil? Não estaríamos abrindo mão de uma ferramenta de expressão importante para a nossa saúde mental? Uso bastante preto pelos motivos expostos acima, mas não consigo me imaginar assim numa linda manhã ensolarada de verão ou numa gloriosa tarde de primavera. Penso ser necessário estar em sintonia com o universo, e as cores são muito poderosas para traduzir bem nosso estado de espírito e essa comunhão com o ambiente.

Essas questões me lembraram do trabalho do suíço Johannes Itten, professor de Teoria da Cor da antológica Bauhaus, uma das primeiras e mais importantes escolas de Design do mundo.

Itten acreditava que as preferências pessoais pelas cores revelavam não apenas o gosto subjetivo da pessoa, mas também muito de seu temperamento e das suas limitações. Entender mais sobre as cores prediletas era, para ele, um importante exercício de auto-conhecimento. Essas associações pessoais entre cores harmônicas diferentes para cada indivíduo sofrem também influências culturais, sociais, conscientes e inconscientes.

Anos depois do trabalho de Itten, pesquisadores de psicologia conseguiram relacionar a escolha das cores com estados emocionais e com a estrutura da personalidade. Os estudos foram tão bem sucedidos que alguns países utilizam testes de preferências cromáticas como auxiliares nos diagnósticos clínicos dos pacientes.

Em suas pesquisas, Itten descobriu que os talentos das pessoas são bem traduzidos pelas cores de sua preferência. O pesquisador separou duas características distintas que as cores têm. A primeira é o agente cromático, que refere-se à constituição do pigmento, sua realidade físico-química. A segunda é o efeito cromático, que traduz o impacto que a cor tem sobre nós, a realidade psicofisiológica da nossa percepção.

Levei um tempo para gostar de azul claro porque um dia, quando criança, ouvi a minha mãe comentar que era cor de cemitério. Tem quem não goste de vermelho porque esse tom traz lembranças desagradáveis sobre alguma fase da vida. Nossa história é completamente colorida, não há como negar a presença marcante das cores em cada cena. Assim, o cérebro de alguém tem motivos para preferir usar azul com detalhes vermelhos, enquanto outra pessoa jura que azul só combina mesmo é com marrom. Isso sem contar que o tom de pele e cabelo também precisam ser levados em consideração se estamos falando de roupas. É complicado, trabalhoso, e, como diz a nossa filósofa, tem que pensar muito.

Itten já dizia, em 1961, que “as pessoas juntam cores complementares ou combinações que estão na moda em vez de refletirem-se a si mesmas”. Outras gentes, como a Márcia, elegem uniformes pessoais que as liberam de buscar a difícil sintonia entre a roupa e o humor do dia.

Por tudo isso, o estudo das cores deve ser um exercício divertido e revelador para os designers, uma vez que só a prática constrói a excelência. Descobrir e analisar suas próprias predileções deveriam ser itens obrigatórios na formação de um bom profissional da área.

Penso que, conhecendo-se melhor do ponto de vista cromático, os designers saberiam distingüir melhor suas preferências das dos seus clientes, e, principalmente, estariam mais preparados para eleger os tons mais adequados a cada projeto, independente do seu gosto ou o do cliente, posto que, muito além das combinações pessoais, há que se considerar estudos sobre psicodinâmica das cores e outros aspectos importantes, tanto objetivos como subjetivos, essenciais para uma composição competente.

Designers, são por definição, pessoas coloridas. Uniformes monocromáticos são perfeitamente aceitáveis e convenientes para qualquer outro profissional. Porém, na minha opinião, designers que só andam de preto nada mais são do que uns grandessíssimos preguiçosos…

Ligia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

Quebra-quebra

 

Acontece mais vezes do que eu gostaria, mas quando vejo um trabalho gráfico grotescamente desalinhado, com proporções erradas e um indisfarçável desprezo pela ergonomia, é comum ouvir o seu orgulhoso autor (profissional ou estudante) declarar que ficou assim porque ele é inovador e gosta de quebrar as regras.    

 

Quebrar as malditas e famosas regras, além de ser podre de chique, ainda nos dá uma maravilhosa sensação de transgressão. Quem não gosta?   

 

Pois então. O negócio é que quebrar regras (pelo menos as do design), não é tarefa para amadores. Não basta cortar o cabelo no melhor estilo emo e sair arrastando o mouse descontroladamente para achar que está dando sua contribuição pessoal contra o mercado, culpado de todos os males da humanidade, da caspa aos bugs do CorelDraw.  

 

Para mim, o tal infrator deveria ter pelo menos um histórico mínimo de convivência com as tais regras antes de assassiná-las alegremente. Deveria conhecer seus  hábitos, costumes, dificuldades, crises. Ser confidente, parceiro e cúmplice dos conceitos. Freqüentar as entranhas da semiótica, ser amante contumaz da teoria das cores, jantar todas as noites com a ergonomia, dançar agarradinho com a gestalt, participar de orgias com a tipografia, tudo isso sem perder de vista as proporções e os alinhamentos, normalmente mais ariscos. Falo de contato diário mesmo, de sentir o hálito, íntimo de enjoar. Até que, com o tempo, a relação se desgastaria e o designer-inovador resolveria dar um chega-pra-lá fatal nessa galera espaçosa.  

 

Um crime sim, mas plenamente justificado pela paixão, pela fadiga, por um propósito, pela libertação. De preferência, quebrar o pescoço de uma por uma em projetos alternados (regricídio em massa é para ditadores surtados). Melhor quanto mais premeditado, mais sutil, mais noir, mais cheio de graça. Ataques  vulgares de peixeira não cativam o público (nem os clientes). Para crimes elegantes é preciso cultura e sangue-frio.  

 

O que mais se vê, infelizmente, é designer matando a pauladas perfeitas estranhas, regras que ele nunca viu antes (ou não se lembra). Sujar as mãos para dar um fim cruel a desconhecidas, vamos combinar, carece de um mínimo de dignidade, né? Um verdadeiro barbarismo para quem se diz profissional. Se o sujeito não conhece as vítimas, então elas não lhe incomodam, não existem para ele. Como é possível então quebrá-las, amassá-las, picá-las, estraçalhá-las ou o que for?    

 

Tipos assim não quebram regras. O ar blasé, na verdade, esconde uma profunda ignorância das coisas do mundo em geral e da sua profissão em particular. Puro blefe.   

 

Comigo esse papo de quebrar regras não pega não. Além do mais, detesto covardes.   

 

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br 

 

Paz no mercado

Metáforas são tudo de bom. Elas transferem o sentido original de uma palavra para um novo contexto e, com isso, contribuem muito para a gente se expressar de forma mais didática, organizar melhor os pensamentos e entender com mais clareza nosso tresloucado mundo. Ela se aproveita de idéias conhecidas e familiares para introduzir outras, mais novas e originais. Há que se ter muita cultura e criatividade para dominar essa arte, e não é à toa que a gente encontra verdadeiros mestres do riscado entre os maiores filósofos.

Os profissionais de marketing e os homens de negócios, que não são bobos nem nada, vivem explorando as amplas possibilidades dessa poderosa ferramenta. Só que num mundo mergulhado em testosterona, acabam apelando para o esperados e manjados conflitos e disputas como figura de linguagem. Independente de todos os méritos da obra “A arte da guerra”, do lendário Sun Tzu, não gosto da metáfora. Mesmo tendo inspirado tanta gente boa e servir de referência até hoje, ainda me incomodo com esse jeito de pensar. Acho exageradamente belicoso e o mundo já tem esse ingrediente em excesso. Como é que o pessoal coloca mesmo nos briefings? Ah, público-alvo. Não engulo esse nome de jeito nenhum.

Lembrei disso numa visita recente que fiz ao site de um dos maiores escritórios de design do Brasil especializado em gestão de marcas, o Ana Couto Branding & Design. Bem na página inicial, aparece a seguinte frase: O objetivo de uma marca não é atingir seu público”. Logo depois, vem: “O público não é um alvo”. O que posso dizer de tanta audácia e atrevimento? A-do-rei! Fazia tempo que não me sentia tão identificada com uma abordagem.

O uso constante da metáfora da guerra acaba por provocar esses tratamentos brutais que a gente é submetido todo dia por empresas que se dizem preocupadas conosco. Mas também, o que esperar de alguém que quer nos atingir, que nos considera apenas um alvo? Alvo não interage, é passivo. Fica quieto, só esperando ser espetado ou furado. Ninguém respeita alvo; ele está lá só como exercício, para contar pontos na competição, para somente um ganhar e todos os outros perderem (claro que o alvo nunca ganha). Alvo é bidimensional, sem nenhum refinamento ou originalidade. Ninguém quer saber o que o alvo pensa, sente, ou quer. É cruel e de mau gosto. Não sei quanto a vocês, mas eu detesto ser vista e tratada como alvo. Precisamos urgentemente de novas idéias.

Aliás, tenho até uma sugestão a dar. Que tal, se em vez de público-alvo, a gente usasse uma metáfora mais parecida com a maneira com que a empresa quer (ou diz que quer) tratar o seu cliente? Simplificaria muito mais os planejamentos, pois o grau de intimidade e atenção que se daria ao freguês ficaria mais definido: teríamos o público-pretê, o público-ficante, o público-namorado, o público-apaixonado, o público-comprometido, o público-pra-casar, o público-amigo-de-infância, o público-colega-de-aula, o público-casinho, o público-conhecido-de-vista, o público-confidente, o público-vizinho-de-porta, o público-amante, o público-sai-pra-lá, o público-só-por-uma-noite, e mais uma infinita gama de ricas possibilidades.

A metáfora da guerra, além de simplista, está datada. Que atingir o mercado, que nada. Vamos seduzi-lo, encantá-lo, atraí-lo, até mesmo desencaminhá-lo, mas jamais pela força bruta. Alvos são para meninos crescidos brincarem. E design, vocês sabem, é coisa de gente grande.

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

O design e a engenharia

Se tem uma coisa que eu adoro é conversar com gente inteligente. Mas o que mais me encanta mesmo é quando a pessoa usa essa inteligência para destruir meus argumentos, duvidar das minhas certezas, provocar a reavaliação dos meus conceitos.

 

Pois foi exatamente isso que aconteceu numa de minhas aulas de introdução à biônica. Estava confortavelmente discutindo sobre a definição de design que forjei junto com minha equipe em uma aula do doutorado. Depois de estudar várias referências (sim, nós analisamos também aquela que diz que design é sinônimo de projeto entre outras dezenas), concluímos, após exaustiva discussão, que o design se sustenta sob o tripé projetoconceitoestética. Desde então tenho usado essa definição, mesmo sabendo que ela não é consenso e gera polêmica. Não a apresento como “a verdade”. É apenas, do meu ponto de vista, a definição com a qual me senti mais confortável em defender até hoje.

 

Vejamos: o projeto permite a produção em escala industrial; o conceito explica a função primária do objeto, o significado, a escolha dos materiais, formas e cores, o ciclo de vida, a maneira como ele vai interagir com o ser humano, a ergonomia, a usabilidade; a estética é o que o torna atraente, o que encanta e faz vender.

 

Foi aí que os alunos perguntaram: mas e a função, não é o mais importante no design? Sim, a função é muito importante, mas, como já disse, ela está embutida no conceito. Para eles, a estética é que deveria estar implícita no conceito. Quem deveria sustentar o outro pé deveria ser a função. A sugestão é que o modelo fosse mudado para projetoconceitofunção.

 

Retruquei que hoje em dia, dadas as inúmeras opções de compra, o desempenho e a facilidade de uso de objetos concorrentes são mais ou menos equivalentes. As pessoas não escolhem uma televisão ou um carro pela sua função estrita, mas pela sua função ampla, que inclui o simbolismo. A função estrita (o uso primário do objeto) continua fundamental; ninguém quer um telefone que não funcione; mas não é mais o fator que decide a compra.

 

Há objetos de design, inclusive, cuja função é apenas significar; é o caso das jóias e de alguns acessórios, por exemplo. O peso da função no projeto do objeto dependeria então do contexto onde (e por quem) ele será usado. Por isso é que, para mim, a função faz parte do conceito. Apenas para evitar mal entendidos, vou repetir: não estou dizendo que a função primária não é importante, mas que o peso da funcionalidade em um objeto depende de como ele foi conceituado. Para deixar bem claro, coloco a função simbólica nos domínios da estética e deixo a função primária (usabilidade) no eixo do conceito.

 

Então o Daniel me desafiou: ok, algumas aquisições privilegiam o significado e a estética na decisão de compra. Mas há outras onde a aparência nem é considerada. Se eu vou adquirir um tanque de guerra ou um míssil, por exemplo, estou pouco me importando se o negócio é feio ou bonito. O desempenho dele é mais importante que tudo.

 

É mesmo, o rapaz tinha toda razão. Fui para casa matutando, onde é que está o furo na minha linha de raciocínio? Se eu vou comprar um robô ou uma máquina industrial, não escolho pela beleza, mas pelas características técnicas. Será que eu deveria rever minha definição de design?

 

Foi então que, depois de uma noite mal dormida de tanto queimar os miolos, cheguei a uma conclusão que me satisfez. Olha só.

 

Quando um objeto é concebido pensando-se apenas e tão somente na sua função primária, sem considerar sua função simbólica (estética) isso não é design. É engenharia.

 

Justamente o que separa o design da engenharia é essa perninha da estética. O projeto e o conceito, a engenharia também tem, posso dizer com toda certeza, inclusive, porque foi lá que a ergonomia nasceu. Na estética é que mora a diferença entre a engenharia e o design — a engenharia não perde tempo em encantar; o foco do trabalho é a função primária do objeto.

 

No final das contas, foi um ótimo exercício de auto-conhecimento. Finalmente descobri que foi exatamente esse o motivo que me fez migrar da engenharia para o design. Eu adorava a engenharia, faria tudo de novo, mas sentia falta da estética, do simbólico.

 

É isso, então. Na engenharia, a forma segue a função. No design, a forma segue a intenção.

 

Obrigada, Daniel.

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

Sobre a evolução das coisas úteis


Livrarias de aeroporto são pródigas em best-sellers de negócios e auto-ajuda, mas, garimpando bem, é possível encontrar verdadeiras jóias. Foi em Brasília que descobri “A evolução das coisas úteis: clipes, garfos, latas, zíperes e outros objetos de nosso cotidiano”, de Henry Petroski. Ele conta a história do design partindo de objetos do dia-a-dia que um jeito muito original e bem fundamentado.

Petroski pauta a história da evolução dos objetos a partir de algumas premissas muito interessantes que valem a pena conhecer. Vamos lá:

1. O luxo é a mãe da evolução. É o desejo, e não a necessidade, que impulsiona o desenvolvimento tecnológico. Segundo ele (e não dá para contestar), a gente precisa de água, mas daria para sobreviver numa boa sem gelo ou ar-condicionado. Ninguém morre se não tiver um iPod para chamar de seu e todas as gerações, exceto a última, conseguiram namorar tranqüilamente sem telefone celular e internet. São justamente aqueles pequenos luxos e comodidades os motores da inovação e da evolução das coisas. Maslow já tinha apontado esse caminho na sua famosa pirâmide, lembram?

2. A forma não segue a função; segue as falhas. Aqui aparece uma citação debochada e muito boa de um estudioso do design, David Pye, que declara, com todas as letras, que “a função é uma fantasia”. Ele ridiculariza a idéia de que uma coisa tem determinada aparência “porque precisa ser assim”: “O conceito de função em design (…) poderia merecer alguma atenção se as coisas invariavelmente funcionassem. Na verdade (…) nosso motivo inconsciente de fazer tanto trabalho inútil seria mostrar que, se não somos capazes de fazer as coisas funcionarem direito, pelo menos podemos fazer com que tenham boa aparência”. Exageros à parte, no fim é isso mesmo: não há objeto conhecido que funcione com perfeição, por isso é que tudo está sempre mudando e evoluindo. Sobre a teoria funcionalista, o autor apresenta ainda uma pérola de Adrian Forty: “Poderíamos dizer que os 131 diferentes designs criados por Montgomery Ward para os canivetes sejam resultado da descoberta de novos modos de cortar?”. Se a forma realmente seguisse a função, todos os objetos com a mesma função convergiriam para a mesma forma. Senão, como explicar a coexistência de talheres como garfo e faca e os hashis, aqueles palitinhos japoneses? A função (ajudar a comer) não é a mesma? Petroski mostra que a forma vai evoluindo à medida que as falhas vão sendo solucionadas em cada contexto.

3. O designer precisa escolher as falhas que irá manter no projeto. Pois é, partindo-se do princípio que não há objetos perfeitos e que alguns requisitos são sempre contraditórios, o designer precisa optar entre as falhas que irá manter e aquelas que irá corrigir ou eliminar. É nessa capacidade de decidir o grau e o lugar onde recairá a imperfeição que mora o talento de um bom profissional. As concessões variam: custo, peso, estética, segurança, conforto, mensagem; equilibrar tudo isso em um objeto só é tarefa para poucos.

4. O designer é um observador pró-ativo. Está no livro: designers são pessoas que não apenas xingam, mas logo se põem a pensar o que pode ser feito para eliminar o aborrecimento. Lawrence Kamm, outro estudioso citado, aconselha quem se dedica ao design a observar todos os objetos ao seu redor e se perguntar continuamente: “por que foram feitos assim?”; “como poderiam ser aperfeiçoados?”. Raymond Loewy, um dos primeiros designers da história dos Estados Unidos, afirmava que “grande parte dos mais ilustres engenheiros, gênios executivos e gigantes financeiros parecem viver num vácuo estético”. Sei não, mas não me canso de me surpreender com a total incapacidade de alguns estudantes de design (e até profissionais) de se incomodar com a desarmonia e o mau design. Se eles sequer notam o mundo à sua volta, como podem contribuir para melhorá-lo?

5. O registro de patentes pode atrapalhar o desenvolvimento de novos produtos. Essa é a tese mais polêmica. Petroski defende que, se os designers (ou inventores, como ele volta e meia os chama) não estivessem tão preocupados com seus direitos autorais, poderiam trabalhar mais em equipe e aproveitar pontos de vista alheios para a evolução de seus produtos. Cita vários exemplos de projetos que foram concebidos isoladamente e em segredo, mas que poderiam ter se beneficiado mutuamente com o compartilhamento das experiências.

6. As pessoas não gostam de inovações radicais. Bem, essa não é realmente nova. O ser humano detesta mudanças e resiste bravamente a quaisquer soluções muito diferentes daquelas que ele já conhece, é fato. Loewy criou até uma sigla para descrever o fenômeno: MAYA (Most Advanced Yet Acceptable). Assim, é preciso mudar aos poucos e de maneira a conservar algumas formas conhecidas, sob pena das pessoas rejeitarem a novidade. John Heskett, outra referência de respeito, diz que os designers devem “buscar um equilíbrio delicado entre a inovação, para criar interesse, e elementos que possam ser identificáveis para transmitir confiança”. É isso: inovação ma non troppo!

Tem muita coisa mais, como a história completa da 3M (eu só conhecia a parte do Post-It), estudos aprofundados sobre os objetos do título e a descrição de perfis inovadores e empreendedores.

Eu não sei quanto a você, mas eu vou colocar esse livro no topo da lista dos meus objetos úteis.

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

O design do dragão

Quando estava escrevendo a minha tese, lembro de ter lido um artigo de um filósofo alemão contemporâneo, Wolfgang Welsch, onde ele dizia que “(..) assim como o século XX foi o século da arte, o século XXI será o século do design”. Fiquei impressionada com a frase desse estudioso da estética, e cheguei mesmo a trocar alguns e-mails a respeito. E cada vez mais me convenço de que ele está pleno de razão.

 

Com esse papo todo das Olimpíadas em Pequim, acabei me lembrando do 7o Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, que aconteceu em Curitiba, em 2006. Fui apresentar um artigo e saber em que pé está o estado-da-arte do design nesse país. Conheci muita gente, revi colegas, assisti a palestras, conferências e apresentações. Alguns dos maiores autores do design estiveram lá, como o alemão Bernhard Bürdek. Trabalhos inéditos foram lançados, pesquisas criativas foram apresentadas, mas o que mais me impressionou mesmo foi a apresentação da professora Wan-Ru Chou, do Departamento de Design Industrial da Shih Chien University, de Taipei, Taiwan.

 

A primeira informação impactante foi que o número de cursos superiores de design na China cresceu assombrosos 2000% desde 1980 (em 2006 eram cerca de 400 escolas — hoje deve ter crescido mais ainda). O dragão já se deu conta de que esse é um requisito imprescindível para continuar no mercado, mesmo porque o trabalho escravo praticado lá não deve se sustentar por muito mais tempo. Por mais selvagem que seja o capitalismo, as consciências dos consumidores começam a incomodar (que o diga a Nike, cujas ações se desvalorizaram em 50% quando descobriu-se que a empresa utilizava mão-de-obra infantil, em 1995).

 

A simpática Wan-Ru Chou (e, cabe ressaltar, com um inglês competentíssimo) mostrou como os chineses fazem a lição de casa. Todo mundo sabe que o design é um curso multidisciplinar, mas a coisa aqui sempre fica só no discurso. Lá, eles levam a prática a sério: há festas regulares em prédios especialmente construídos, onde estudantes de design, engenharia, arquitetura, moda e comunicação se reúnem em baladas performáticas onde todo mundo mostra seus talentos menos ortodoxos. Rolam concursos de trajes e a decoração é toda temática.

 

E a criatividade vai ainda mais além em um concurso de artefatos móveis. É assim: cada aluno (ou equipe) precisa construir um protótipo de uma geringonça que consiga transportar uma pessoa por um circuito de 10 metros de comprimento que inclui uma discreta inclinação. A engenhoca pode ser movida a qualquer tipo de propulsão, desde mãos nervosas até discos excêntricos. Como o objetivo é desenvolver a criatividade, não há preocupação com a viabilidade técnica ou de produção em escala. Basta que o percurso de 10 metros seja concluído (mesmo que com sobressaltos; houve até protótipos que se desintegraram devido ao esforço). Divertido, integrador, original, poderoso. 

 

Mostrou-se também outras práticas de dar inveja em qualquer estudante brasileiro: intercâmbio com universidades do mundo inteiro; workshops com designers-referência em suas áreas; laboratórios equipadíssimos.

 

É. A China não está aí para brincadeira. Tudo indica que o país do futuro é o deles, não o nosso. Pois, como diz o conhecido consultor americano Rodney Fish, “somente uma empresa pode ser a mais barata. As outras terão que usar o design”.

 

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

 

Quando não dá certo…

Tem dias que essa coluna até que está legal. Mas algumas vezes, confesso que não me orgulho nem um pouco de vê-la publicada. Até erros de português encontro.

 

Pois é, a gente não acerta todo dia (na verdade, o índice de erros é bem alto), mas ninguém precisa se matar ou desistir por causa disso. Melhor assumir, ouvir as críticas com atenção e partir para erros novos.

 

Acontece comigo, com você e com designers gráficos também. Pena que as pessoas relutem tanto em admitir.

 

Método projetual em design é uma coisa que designers sérios levam a sério mesmo. Os autores consagrados apresentam variações, mas de tudo o que li, sempre aparecem, de um jeito ou de outro, os seguintes passos:

 

1. Obter o máximo de informações sobre o projeto. Isso pode acontecer de várias maneiras. Deve-se definir bem o problema e conhecer o público de interesse, estudar os concorrentes diretos e indiretos, relacionar as necessidades e restrições que o projeto deve atender, prospectar tendências, verificar a disponibilidade de técnicas e materiais, redigir um briefing bem completinho e tudo o mais que puder ajudar. Eu incluo ainda, nos projetos dos quais participo, um diagnóstico da identidade corporativa.

 

2. Organizar ou representar visualmente as informações associadas. Isso pode ser feito por meio de um painel semântico, onde imagens e palavras podem conduzir o fluxo de idéias, mas há outras formas. Há quem use mapas mentais, visite bancos de imagens e até quem prefira rabiscar em Moleskines.

 

3. Gerar alternativas. Quem ignora o método geralmente começa desse ponto, perdendo pelo caminho um monte de informações essenciais quando se senta na frente do computador. A geração de alternativas pode ser feita a lápis mesmo, num primeiro momento.

 

4. Selecionar alternativas e refiná-las. Designers profissionais costumam escolher 3 opções (no máximo) para apresentar ao cliente. Isso acontece por dois motivos: se ele apresenta 10 idéias, é porque não fez uma pré-seleção e o trabalho ainda não está maduro. Além do mais, o cliente pode ficar confuso e querer construir um Frankestein com um pedaço de cada. Por isso é que se precisa estudar bem todas elas, verificar os prós e os contras de cada uma, analisar a pregnância da forma, as possíveis interpretações semióticas, se as cores são as mais apropriadas, as aplicações em positivo e negativo, a adequação da tipografia, os alinhamentos, a Gestalt. Se é um cartaz, é importante se certificar que ele cumpre os objetivos. Se é uma marca, garantir que ela não contradiz a essência da empresa. Se é um documento, assegurar-se de que a informação é comunicada com clareza e facilidade.

 

5. Apresentar o resultado ao cliente e estar aberto a ouvir feedbacks. Essa é a parte mais difícil, sem dúvida. Principalmente porque nesse ponto o designer já está considerando o seu trabalho como um filho e disposto a defendê-lo com unhas e dentes de qualquer ameaça de crítica. Sempre advogo que um profissional precisa ter argumentos técnicos para apresentar em caso de dúvidas ou descontentamentos, até para evitar que o cliente mutile o projeto ou modifique-o a ponto de torná-lo irreconhecível. Ok, mas às vezes acontece do trabalho não ter ficado bom mesmo.

 

O fato do sujeito ter seguido todos os passos, ter feito tudo direitinho e se dedicado, ainda não garante um resultado digno de nota. Pode ter faltado talento. Pode ter faltado tempo ou planejamento. Sei lá, pode ter faltado até inspiração para encontrar uma solução eficaz e contundente. Nada disso significa que ele é um incompetente, mas certamente significa que ele precisa fazer de novo.

 

O duro é quando o designer não quer admitir isso de jeito nenhum: ficam ele e o cliente tristes, frustrados, infelizes, agredindo-se com meias palavras e guardando mágoas mútuas. Ruim para todo mundo.

 

Vejo alunos dedicados fazerem tudo certo e apresentarem trabalhos medíocres, ruins mesmo. Como fazê-los entender? Na maioria das vezes, falta cultura visual, eles não fazem a menor idéia do que estou falando e acreditam piamente que o resultado ficou ótimo.

 

Não gosto da palavra humildade porque associo-a sempre à submissão, coisa que acho péssima. Então, nessa hora, aconselharia mesmo é ter bom senso e manter ouvidos e olhos bem abertos.

 

A gente pode aprender muito nessas experiências traumáticas quando consegue reconhecer que não foi brilhante. Convém não desperdiçar a chance.

 

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

Identidades criativas

É muito comum as pessoas (inclusive designers) confundirem identidade corporativa com identidade visual, aquela parte do design que trata de elaborar marcas gráficas para as empresas.

Mas essa confusão toda não faz sentido, veja só porquê. O que é a identidade de uma pessoa? São aquelas características que só ela tem, as qualidades e os defeitos, as manias e idiossincrasias. Com uma empresa é a mesma coisa: a identidade corporativa é o conjunto de atributos que a tornam única, especial; é o seu DNA, que muda pouco ou nada ao longo do tempo. Como as marcas mudam e nem sempre são concebidas de maneira adequada, já dá para ver que identidade corporativa não pode ser sinônimo de design gráfico. Além disso, as características mais importantes são conceituais, não físicas.

Isso não quer dizer que o design não seja importante. Ele é, e muito! É o design o responsável por traduzir os atributos que definem a identidade da empresa em projetos bi ou tridimensionais. O design é que possui as ferramentas necessárias para garantir que a marca não possua elementos que contradigam esses atributos.

Minha consultoria, além da aplicação de um método que auxilia na definição da identidade corporativa, inclui também módulos específicos que buscam alinhar o que a empresa é, na sua essência (identidade), com as suas manifestações físicas (os produtos, embalagens, impressos, webdesign, ambientes, apresentações, comunicações, nomes, relações com os clientes, gestão de pessoas e identidade visual). E vejam só, tem um módulo especialmente concebido para orientar o alinhamento da marca gráfica da empresa à sua identidade corporativa.

Primeiro, é realizada uma análise detalhada da marca atual que considera as formas, as cores e a tipografia para verificar se ela traduz corretamente os atributos essenciais. A semiótica, a Gestalt e outras teorias ajudam a embasar as considerações e recomendações para a busca da melhor solução, se for o caso. Isso vale para a marca e todos os projetos gráficos que serão usados pela empresa. Para entender melhor, vamos a um exemplo: se a empresa é predominantemente racional, tecnológica, formal e clássica, deve-se preferir cores frias a quentes, formas exatas e simétricas a orgânicas, fontes tipográficas sem serifas a fontes manuscritas. Nada que possa amedontrar um designer experiente.

Mas o que a criatividade do título tem a ver com tudo isso? É que, não raro, ouço comentários reclamando que as recomendações “engessam” e “podam” a criatividade, tiram a flexibilidade do designer e impedem a obtenção de soluções originais, tendendo a fazer as peças caírem na “mesmisse”.

É realmente muito comum que o conceito de criatividade seja relacionado com o de liberdade. A criatividade é uma ferramenta, e, como tal, deve se prestar ao atendimento de objetivos. Criatividade sem limites é arte. Arte é a expressão particular do artista, no mais das vezes, sem nenhum compromisso com resultados mercadológicos ou variações de percepção que a obra possa provocar. Design corporativo não é arte, mas uma forma de traduzir a identidade da empresa da melhor maneira possível a fim de atingir os objetivos da comunicação.

Percebam que as recomendações propostas para a identidade visual são apenas orientativas, não definem como o designer deve fazer o seu trabalho. Tenho certeza de que um bom criativo considerará essas limitações meros detalhes, já que ele precisa conviver com muitas outras de bem mais complexa solução. Mesmo assim, observe-se que a as diretivas são para que esses elementos sejam apenas evitados – se houver uma justificativa conceitual realmente muito bem fundamentada, é claro que serão usados. Se a justificativa não se sustentar, prevalecem as recomendações.

Se o criativo em questão só consegue achar soluções que tenham formas orgânicas para a empresa do exemplo, ele deve estar bloqueado mesmo, mas não é por causa das recomendações. Elaborar um projeto gráfico sem nenhuma limitação, significa projetar sem conceito nenhum. Repito, isso não é design.

Por último, vale lembrar que em praticamente toda a bibliografia relacionada à criatividade, os exemplos de exercícios criativos são sempre concebidos para a solução de um determinado problema com condições de contorno e requisitos a serem atendidos (que nada mais são do que limitações e restrições de projeto). Isso acontece porque, na vida real, sempre há requisitos a serem cumpridos e limitações a serem contornadas.

As restrições, são, assim, um combustível para a criatividade. Não há exercício de criatividade sem nenhum tipo de restrição, pelo menos aqueles com alguma aplicação prática. Mais restrições requerem mais criatividade, não menos. Assim, ao contrário de engessar a criatividade da equipe, essas recomendações desafiam a busca de soluções realmente originais, fundamentadas e inventivas. Tenho visto resultados incríveis em algumas empresas.

Pouca coisa consegue tolher a criatividade de alguém realmente talentoso — gente criativa e flexível usa as recomendações como ferramentas, não como viseiras tapa-olho.

Pois é, é que ferramentas só são úteis para quem sabe usá-las…

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

Números mágicos

Talvez os números sejam a forma mais sensacional de demonstrar a inteligência humana. Essa capacidade de abstrair a idéia de quantidade, e mais, de manipular esse conceito e relacionar proporções, por si só já justificaria o kilo e pouco de cérebro que a gente carrega sobre os ombros.

  

Todo mundo já aprendeu números romanos na escola, mas poucos se lembram por que usamos apenas os algarismos arábicos nos dias de hoje. É simples: os hindus, os egípcios e os babilônios, ao contrário dos romanos, já usavam o mágico número zero. Ele torna possível operações matemáticas com números grandes usando o sistema posicional. Experimente fazer contas com mais de um dígito sem nosso amigo zero, usando apenas os números romanos. Simplesmente não dá!

 

Tem também o enigmático PI (??3,14), aquele que aparece em todas as formas circulares do universo inteiro e que não pode ser descrito por uma fração (o número de casas depois da vírgula é infinito, como todo número irracional que se preze). O PI é tão antigo que não se sabe ao certo quem o descobriu, mas o nosso ancestral que começou a dividir a circunferência dos círculos pelo seu diâmetro deve ter ficado emocionado ao descobrir que dava o mesmo número para qualquer que fosse o tamanho.

 

Uma das coisas mais fantásticas que já li sobre o PI está no livro “O último teorema de Fermat”, de Simon Singh. Ele conta que um geólogo da Universidade de Cambridge resolveu dividir o comprimento real de um rio, considerando todas as curvas e meandros, pela linha reta calculada da nascente até a foz. Adivinha o que ele encontrou, para qualquer rio? Nosso querido PI! Não é fantástico? Einstein sugere que o PI, nesse caso, é o resultado da batalha entre a ordem e o caos.

 

E ainda tem o sensacional PHI (??1,618), chamado de número de ouro e responsável pela proporção áurea, ou divina. Ele aparece o tempo todo na natureza, seja na espiral logarítmica que se forma quando olhamos o rabo de um camaleão, no miolo de um girassol, seja num furacão visto de cima e até nas formas da Via Láctea. Aparece na distribuição das folhas de um galho, nas medidas dos desenhos de uma pena de pavão e na asa de uma borboleta. Para o design, o número PHI é mesmo de ouro, pois ele indica quais são as proporções mais agradáveis ao olho humano. Um livro muito bom para quem quer saber mais sobre essa jóia é “Razão áurea: a história de fi, um número surpreendente”, de Mario Livio.

 

Eis o ponto onde quero chegar: designers não são tão amigos da matemática como deveriam. A reação alérgica a números é aquela mesma que ataca a quase todos que não decidiram estudar as ciências exatas.

 

Por que isso acontece? Bom, Pitágoras (aquele do teorema) nos dá algumas pistas. Desde o início, ele foi perseguido porque pensava demais, e o que é pior, perguntava demais. Desde suas primeiras descobertas matemáticas, sacou que deveria manter segredo se quisesse continuar vivo. Chegou a se isolar numa caverna em uma parte remota de uma ilha grega para poder estudar sem ser perturbado. O cara, porém, não gostava de ficar sozinho (vocês pensam que todo matemático é chato?) e acabou pagando um menino para estudar com ele. Apesar do rapaz ser muito aplicado, Pitágoras achou que ter um aluno só limitava bastante suas pesquisas e queria mais gente para trocar idéias. Foi no sul da Itália que ele encontrou ambiente mais propício para criar uma irmandade que chegou a ter seiscentos seguidores (incluindo mulheres, com uma das quais ele chegou a se casar). A irmandade era uma espécie de religião, onde os números eram os deuses. E Pitágoras era tão neurótico com os segredos matemáticos que os membros só eram admitidos se jurassem nunca revelar o que haviam descoberto. Reza a lenda que, depois da morte do Mestre, um dos alunos deu com a língua nos dentes sobre o dodecaedro e acabou afogado. Eu, heim?

 

Bom, esse cuidado todo não salvou a pele de Pitágoras, pois a mais brilhante escola matemática do mundo foi cercada e incendiada com o Mestre dentro. Graças a alguns discípulos que conseguiram escapar e se espalharam pelo mundo, formando outras escolas, hoje sabemos muita coisa sobre matemática devido a esse fantástico louco de pedra. 

 

As perseguições religiosas e políticas que sempre existiram foram levando os cientistas a escreverem de maneira cada vez mais hermética. Lembram de Galileu, que caiu na besteira de traduzir em linguagem inteligível o que tinha descoberto sobre as relações entre a terra e o sol? Quase foi queimado pela inquisição por essa ousadia de pensar (e calcular) demais. Se ele tivesse deixado tudo no código cifrado da matemática, não teria sido tão humilhado.

 

Tudo leva a crer que a matemática tornou-se antipática assim para se proteger, mas também acredito que parte da urticária que assola designers, publicitários, escritores e professores de línguas também se deva à impressionante incompetência de alguns professores da disciplina, que insistem em cobrar a parte chata e esconder as histórias mais legais (que talvez eles desconheçam – falta de cultura geral é uma doença das mais sérias).

 

Será que não está na hora de justamente os designers resgatarem essas maravilhas e a apresentarem de maneira mais palatável, amigável e simpática? Designers sabem como ninguém traduzir o mundo de uma maneira sedutora e atraente, que os leigos entendem muito bem.

 

Tudo bem, talvez não precisassem chegar a tanto. Mas, pelo menos, usar com mais freqüência a proporção áurea já seria um bom começo.

 

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br 

Uma questão de princípios

Em se tratando de livros, sou mais que volúvel, sou libertina. Passo de um volume para outro sem remorsos, com paixão e entrega. Leio vários ao mesmo tempo, risco, anoto, releio. A volúpia da palavra impressa me consome.

Esse papo todo é só para apresentar meu mais novo amor: é o “Principios universales de diseño”, de William Lidwell, Kritina Holden e Jill Butler. William é chefe de desenvolvimento de um instituto de ciências aplicadas; Kritina é engenheira da área espacial; e Jim tem um estúdio de design. Uma turma que não é fraca.

Eles se juntaram para escrever a obra porque se deram conta de que, no início do século passado, os designers eram profissionais ecléticos, donos de uma vasta cultura e versados em arte, ciência e religião. Com essa erudição toda eles tinham mais elementos para entender a natureza dos problemas. Os designers de hoje estão ficando cada vez mais especializados e muitos acabaram por atrofiar sua faceta multidisciplinar, tão necessária ao exercício da profissão.

Os autores reconhecem que há coisas demais para estudar; além do mais, nesse universo de novos conhecimentos, há que se selecionar o que ler. É tudo muito complicado e o tempo é curto. Generosamente, o grupo teve o trabalho de selecionar princípios de todas as áreas que poderiam ser úteis a um designer.

Só para dar um exemplo, o primeiro princípio é o da Regra de Pareto (também conhecida como 80/20), criada pelo economista italiano Vilfredo Pareto, que observou que 20% da população possuía 80% da riqueza. Estudiosos aplicaram a mesma proporção em outras áreas e descobriram que 80% do trânsito de uma cidade passa por 20 % das ruas; que 80% dos lucros de uma empresa provêm de 20% de seus clientes, entre outros exemplos. Depois de uma longa excursão na engenharia, onde a regra primou pela ubiqüidade em sistemas de controle de qualidade, ei-la aqui, aplicada ao design. Assim, os autores afirmam que 80% do uso de um produto vêm de 20% de suas características. Pode-se dizer que no design de um site, 20% das funções mais utilizadas devem estar visíveis e acessíveis no primeiro nível do menu. As demais devem ficar em segundo plano para aumentar a usabilidade. Legal, né?

Outro exemplo: a Lei de Hick, da psicologia experimental, diz que o tempo que se leva para tomar uma decisão é diretamente proporcional ao número de alternativas. Se preciso apertar um determinado botão numa emergência, vou demorar mais quanto mais botões houver para serem apertados. A lei é mais aplicável a tarefas mais simples e que requerem rapidez na tomada de decisões. Certamente muito útil em projetos de interface e em design de equipamentos.

Quer mais? Ainda tem a Navalha de Ockham, que diz que, ante a possibilidade de escolher entre desenhos equivalentes do ponto de vista funcional, convém optar pelo mais simples. A regra, aplicada em várias áreas do conhecimento, é atribuída a um frei franciscano e também filósofo chamado Guillermo de Ockham, que viveu no século XIV. Ele corrobora a máxima de Aristóteles que diz que a natureza sempre escolhe o caminho mais curto. O peso desnecessário, seja físico, visual ou cognitivo, aumenta a possibilidade de comportamentos inesperados e erros.

Gostei mesmo foi do efeito von Restorff, que leva esse nome em homenagem a uma cientista alemã que passou anos estudando este fenômeno, segundo o qual recordamos com mais facilidades coisas claramente diferentes do que coisas parecidas. Assim, para destacar palavras num texto, convém usar o negrito com comedimento, senão se perde o efeito diferencial e tudo fica muito parecido.

Ao todo, são 100 regras que respondem a cinco perguntas básicas:

1. Como influir na percepção do design?

2. Como instruir usando o design?

3. Como realçar a utilidade de um design?

4. Como incrementar a atratividade de um design?

5. Como melhorar o modo de fazer design?

A regra 80/20 faz parte do grupo que responde às perguntas 3 e 5. E todas são muito interessantes. Há regras sobre escolha de cores; proporções figura-fundo; hierarquia, organização, interferências, alinhamentos, adequação, legibilidade, pregnância, consistência, fragmentação, erros, arquétipos, dissonância cognitiva, enquadramento, modelo mental, autossimilitude, redundância, série de Fibonacci, proporção áurea, efeito da expectativa, fator de segurança, escala, distribuição normal e muito mais.

Para cada princípio há referências às principais publicações nas áreas que lhe deram origem. No mínimo, vale como cultura geral.

Bom, depois disso tudo, acho que não corro mais o risco de ser acusada de fútil e de ser atraída só por um corpinho bonito: nem precisava, mas a encadernação é em capa dura e a diagramação é belíssima! Ah, como o amor é lindo….

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

Formigas renascentistas

Antonio Saez

Especialização é coisa para formigas”. Estava folheando uma revista em um café quando me deparei com essa bomba. A frase me fez pensar. Como assim? Lembrai, leitores, eu tenho um título de doutorado, strictu sensu. Quer mais especialista que isso? Era uma entrevista com o cartunista Aroeira, que dissertava sobre seus múltiplos talentos (além de excelente chargista, o moço também toca saxofone em uma banda). Já as formigas têm capacidade para aprender e fazer somente uma coisa durante toda a vida, que é carregar comida para dentro do formigueiro. São excelentes no que fazem, porém muito limitadas.

Para ele, o ser humano não precisa ser assim. Tive que ler a entrevista toda para entender o raciocínio, que para mim fez todo o sentido. Olha só: ele não quer dizer que uma pessoa não deva se especializar e todo mundo deva ser generalista (assim, nunca descobrirão a cura para o câncer, entre outras coisas importantíssimas). Especialização é essencial, bitolação é que é o problema! Você pode (e deve) ser especialista em alguma coisa, fazer algo melhor que todo mundo, estudar a fundo algum assunto para fazer o conhecimento andar para frente. No complexo planeta que a gente vive, esse é o único jeito de fazer diferença. O problema é que a história não acaba aí. É que você tem que ser especialista em pelo menos uma coisa, mas também ótimo em várias outras. Muito diferente de não ser excelente em coisa nenhuma.

O Aroeira chamou isso de perfil renascentista (eu adorei a metáfora, não é perfeita?). Só para lembrar: no período do Renascimento, as pessoas militavam em áreas diversas com a maior desenvoltura e sem preconceito. Rabelais, em 1532, coloca a seguinte frase na boca de seu personagem Pantagruel: “Todas as disciplinas são agora ressuscitadas, as línguas estabelecidas (…) Eu vejo que os ladrões de rua, os carrascos, os empregados do estábulo hoje em dia são mais eruditos do que os doutores e pregadores do meu tempo.” É impressão minha ou parece que a gente está andando para trás?

O ícone do Renascimento que resume o espírito da época é Leonardo da Vinci, que, como todos sabem, foi o máximo em tudo o que se meteu a fazer: arquitetou, engenheirou, inventou, esculpiu, pintou, enfim, só faltou mesmo bordar. É claro que o Leonardo é um fenômeno genial, mas a idéia é mostrar que a atuação em várias áreas era corriqueira na vida das pessoas daquela época – elas ainda não sofriam da febre da especialização exclusiva.

Adorei a idéia do Aroeira. Especialização sim, desde que o sujeito não vire formiga. Sejamos todos profissionais renascentistas!

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

O que faz de um designer um designer

Karim Rashid

Há alguns meses tive o imenso prazer de assistir a uma palestra do André Villas-Boas, um jornalista que virou designer, e dos bons. O André já publicou alguns livros, entre os quais o antológico “O que é e o que nunca foi design gráfico. Vou tentar compartilhar um pouquinho o que aprendi com ele nesse encontro.

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Eu não sou designer

Ligia Fascioni

Tenho escrito nesse espaço já faz alguns meses e agora, olhando os comentários, acabei de me dar conta que nem me apresentei. Isso é importante para que o pessoal entenda porque, mesmo não sendo designer, insisto em dar meus pitacos em todos os assuntos relacionados.

 

Vamos lá. Sou engenheira eletricista e trabalhei com robótica por 12 anos, feliz da vida, até o dia em que resolvi fazer uma pós-graduação em marketing e me apaixonei pelo assunto. Comecei a fazer cursos na área e acabei me matriculando em uma outra pós, dessa vez em comunicação e propaganda. Foi numa aula de percepção visual que ouvi, pela primeira vez, numa sala de aula, a palavra mágica “design”. Foi amor à primeira vista e, depois desse primeiro contato resolvi que teria como missão compartilhar tudo o que eu aprendesse com meus amigos engenheiros para que eles pudessem ter a real dimensão do poder dessa ferramenta.

  

Depois de gastar até o que não podia em livrarias reais e virtuais (incluindo a minha amada Amazon) e estudar até me tornar “a chata do design” entre os meus amigos, fui aceita no programa de doutorado em gestão do design na UFSC (eu já tinha mestrado em automação e controle industrial). Ao me aprofundar no tema, descobri a importância da gestão da identidade corporativa e desenvolvi um método que já foi aplicado em 23 empresas de todos os portes (esse ano o número ainda vai crescer bastante).

 

Assim, além de dar aulas em cursos de graduação e pós-graduação em design, sou palestrante e consultora de empresas. Meu trabalho é basicamente convencer os empresários a dar mais importância a vocês designers, já que o meu método recomenda a contratação de profissionais especializados em algumas etapas. Para mim é mais fácil falar com esse povo da tecnologia do que para vocês, uma vez que falo a língua dos engenheiros e empresários – eu entendo como pensam pessoas extremamente racionais e cartesianas que não fazem idéia do que seja design (não faz muito tempo eu também era assim).

  

Penso que tenho alguma coisa a contribuir com a profissão de vocês (da qual sou defensora ferrenha), primeiro porque tenho estudado muito e com bastante profundidade os temas relacionados; segundo porque tenho tentado divulgar a importância do trabalho de vocês em todos os meios de comunicação aos quais tenho acesso (tenho um site, um blog, publico artigos em revistas de negócios, sou colunista de um portal de comunicação e marketing e já publiquei 2 livros sobre o assunto – o terceiro está no forno); finalmente porque posso trazer para vocês a visão do outro lado do balcão.

 

Tenho me debatido muito sobre a formação dos profissionais porque não raro me encontro na situação de não ter ninguém para recomendar aos meus clientes (sou exigente e sei que eles também são – não posso queimar meu filme indicando um profissional medíocre). Sei o quanto o português bem falado e escrito, a boa fundamentação teórica, a segurança na apresentação do trabalho, o talento, a postura, a ética e muito conhecimento são fundamentais para que o cliente confie no profissional que está contratando. Por isso é que implico tanto com algumas lacunas que vejo na formação dos designers. Sei que as escolas (pelo menos em Santa Catarina) ainda são novas e eu vim de uma das melhores escolas de engenharia do país. Sei o quanto uma boa formação pesa na hora de apresentar e realizar um trabalho bem feito. Quero ter orgulho de apresentar bons profissionais de design, e não vergonha das apresentações deles, como às vezes acontece.

 

E se tem uma coisa que eu adoro é conversar com gente inteligente. Mas o que mais me encanta mesmo é quando a pessoa usa essa inteligência para destruir meus argumentos, duvidar das minhas certezas, provocar a reavaliação dos meus conceitos. Isso me faz pensar mais, estudar mais, aprender mais. E o que tenho visto nesse forum são comentários muito bem fundamentados. Não vou negar que fico contentíssima quando ganho elogios (sou humana, né?), mas as críticas bem escritas são muito legais de ler. Por isso, queria aproveitar para agradecer ao Ed Ramos, que tão gentilmente me convidou para entrar aqui.

 

Esse é um dos lugares com gente mais crítica (e também bem-humorada) que tive oportunidade de freqüentar, o que torna a experiência mais rica. Por isso, queria pedir muito ao povo que continue participando (com tapas tão elegantes, nem dói muito apanhar), mesmo aqueles que juraram não ler mais nada que eu escrevesse… por favor, vai?

 

PS: Depois desse post juro que vou ficar pelo menos mais uma semana sem publicar nada, pois saquei que já estou abusando do espaço…

 

Lígia Fascioni | http://www.ligiafascioni.com.br

Mendigos culturais

Fisher

Dia desses fiquei chocada na sala de aula. Não devia, mas fiquei. A tarefa era projetar uma capa, e os alunos deveriam trazer um livro encapado com a peça gráfica para que se pudesse ter uma noção de como ficaria. Não vou comentar a pobreza de cultura visual. Vamos pular essa parte, por ora.

Um aluno apareceu com uma agenda encapada. Como era um modelo de couro estofado, a peça ficou cheia de emendas e remendos, numa lamentável apresentação para alguém que faz um curso tão predominantemente visual. Perguntei porque ele não tinha usado um livro em vez da agenda. A resposta foi taxativa, dita sem nenhum pudor ou constrangimento: “porque na minha casa não tinha nenhum livro, só um monte de agendas“. Gente, esse menino faz parte da parcela privilegiadíssima da sociedade brasileira que tem acesso ao ensino superior. Ele mora num lugar onde não existe um único volume impresso! Sua intimidade com os livros era tão pouca que nem ocorreu ao futuro designer pegar um emprestado na biblioteca, mesmo que só para fazer o trabalho.

Sinceramente, nessas horas bate um desespero e dá vontade de chorar. Como é um universitário não tem nenhum livro em casa? Como vivem os pais desse projeto de cidadão, aptos a pagar uma mensalidade correspondente a quase 3 salários mínimos, mas incapazes de ler um primário paulo coelho que seja. Pelo menos um dicionário, ó Deus! Essa progressista família não vive no interior do sertão nordestino, o pai certamente não é cortador de cana. Provavelmente eles assinam TV a cabo e cada membro porta seu celular último modelo. Assim, não deve ser porque “os livros no Brasil são muito caros”, como reza a lenda (os sebos estão cheios de coisas legais a preço de pipoca).

Uma pesquisa realizada ano passado pelo CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola) na região metropolitana de São Paulo, revelou, pasmem, que pelo menos 20% dos universitários não lêem livros. Você pensa que essa notícia é ruim? Prepare-se para uma pior: dos que disseram que lêem, a Bíblia foi citada como o livro mais influente. Duvido que eles leiam realmente a Bíblia, pois a linguagem é muito sofisticada e de difícil compreensão para não iniciados. Acredito que ela foi citada só porque é o livro mais conhecido, o primeiro que vem à mente de quem não quer passar vergonha. E o segundo livro mais influente? Vocês não vão acreditar, mas é ninguém menos que “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry. Sim, aquele mesmo das misses de antigamente!

Gente, como é que nossos futuros profissionais vão desenvolver o senso crítico com essas referências bibliográficas? Como vão se tornar cidadãos completos, com capacidade para se indignar com injustiças? Como vão adquirir cultura para se tornarem pessoas mais ricas e interessantes? Como a história do pensamento vai evoluir, com tão poucos pensantes?

Desse povo, 96% usam freqüentemente a Internet. Agora já deu para entender porque essa galera gosta de usar aquela língua esquisita para se comunicar nos chats e sites de relacionamento; simplesmente porque desconhecem os rudimentos do português.

Pelo que tenho visto em sala de aula, acontece algo muito parecido com os designers, mas com um agravante: além de muitos não saberem escrever, há uma parcela significativa que também carece de cultura visual (visitas freqüentes em livrarias e bancas de revistas, mesmo que só para olhar, já resolveriam grande parte do problema).

Essa falta de cultura, de pai e de mãe, tem provocado comportamentos medievais dignos da Idade das Trevas (não por acaso, uma época em que ninguém lia). No limite, faz com que jovens de “boa família” roubem e espanquem pessoas que consideram inferiores. Há pouco mais de 10 anos, um índio foi morto por jovens e promissores estudantes que tiveram a desfaçatez de se justificarem dizendo que achavam se tratar de um mendigo. A vítima da semana passada é uma empregada doméstica, alegadamente confundida com uma prostituta.

Sinceramente, dispenso a convivência com essa nobreza intelectual; se tiver que escolher, escolho sem titubear mendigos e prostitutas. Mendigos têm muitas histórias interessantes e, convém lembrar, a Bruna Surfistinha escreveu dois livros.

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br