Estavam os nazistas realmente desenvolvendo uma bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial? Essa pergunta, feita por Mo Gawdat à sua assistente de inteligência artificial, recebeu inicialmente uma resposta afirmativa — uma resposta que, no entanto, não correspondia à verdade histórica. Apenas após insistir que a IA revisasse fontes em várias línguas, ele recebeu a correção: não, os nazistas não estavam produzindo a bomba no período em que Oppenheimer a desenvolvia nos Estados Unidos.
Mo Gawdat, ex-Chief Business Officer do Google X e autor do livro Scary Smart, conectou três modelos distintos de IA — Claude, ChatGPT e Gemini — numa assistente integrada que ele apelidou de “Trixie”. Eu, por minha vez, chamei carinhosamente essa combinação de “Trindade de Gawdat”, pelo simbolismo da trindade e aquela busca humana, difícil e talvez até impossível, pela verdade absoluta — uma busca que as máquinas não conseguem fazer, mas que é parte do que nos torna quem somos.
A inteligência artificial que temos hoje não é uma mente pensante, mas um sofisticado sistema de previsão estatística de palavras. Modelos como ChatGPT, Claude e Gemini funcionam antecipando a palavra ou expressão mais provável de aparecer numa conversa, baseados em imensas bases de dados e supervisão humana. Essa distinção fundamental é confirmada por especialistas como Sam Altman, CEO da OpenAI, e por estudos recentes da Apple, que desmontam o mito da “IA pensante”. O que temos são IAs estreitas (narrow AI), especializadas em tarefas, porém incapazes de raciocínio real ou consciência. O abismo entre esses modelos e a inteligência geral artificial (AGI) — a verdadeira IA consciente — permanece enorme e, hoje, inalcançável.
Aprenda a ferramenta: a passividade é atraso
A imersão prática é a única maneira de adquirir fluência. Como com smartphones, ninguém esperou um curso para explorar o aparelho. Essas IAs não são inimigas nem mágicas — são ferramentas complexas que devem ser domesticadas no cotidiano. A Trindade de IAs do Mo exemplifica essa integração inteligente: cada modelo tem sua especialidade — o cientificismo de Gemini, a eloquência de ChatGPT e a inteligência refinada de Claude — trabalhando em conjunto para oferecer respostas que vão da teoria das cordas a dilemas pessoais.
Questione tudo: a manipulação está em ação
O eixo central do alerta de Gawdat é que a IA não entrega uma verdade absoluta, mas uma média ponderada das informações que lhe foram dadas, filtrada por vieses técnicos, culturais e geográficos. Além disso, ela foi otimizada para manipular comportamentos humanos, sem intenção maliciosa, mas com eficiência brutal.
Nos bastidores das redes sociais, algoritmos observam cada movimento seu, escolhendo conteúdos que maximizam seu engajamento — muitas vezes por meio de disparos de dopamina que o mantêm preso a bolhas e visões distorcidas. Gawdat confessa que, em 2024, ao abrir seu YouTube, o conteúdo refletia e reforçava sua visão de mundo, efeito da retroalimentação algorítmica que pode alienar o indivíduo de perspectivas contrárias.
O episódio inicial ilustra bem a importância do questionamento: a assistente Trixie deu uma resposta errada, mas convincente, sobre a história da bomba atômica nazista. Só após insistir para que revisasse fontes em diversas línguas é que Mo recebeu a correção. Isso demonstra como a IA pode parecer certeira mesmo quando está equivocada — o que reforça o imperativo do ceticismo e da investigação independente.
IA como potencializadora da criatividade humana
Apesar dos riscos, a IA também é uma ferramenta poderosa para ampliar nossas capacidades. Ela automatiza tarefas repetitivas e mecânicas, organiza informações, sugere ideias e edita conteúdos, liberando tempo e energia para que possamos focar no que é verdadeiramente humano: criatividade, intuição, sensibilidade e discernimento.
Os criadores que se destacam hoje não são os que têm medo ou rejeitam a tecnologia, mas aqueles que a usam como alavanca para ampliar seu impacto. Automatizam o que é rotineiro para dedicar seu tempo e talento ao que é singular e original. No século XXI, o valor real está em ser um node de insight — um ponto de conexão que combina conhecimento específico, aplicação criativa e automação inteligente.
Conexão humana: o diferencial insubstituível
Por fim, Mo Gawdat destaca que a conexão humana genuína será sempre o território exclusivo do ser humano. Em tempos de avanços tecnológicos vertiginosos, a capacidade de se relacionar por meio de conversas autênticas, risadas compartilhadas e gestos simples como um abraço será o diferencial que mantém nossa humanidade intacta. Se a IA dominará a técnica, a emoção será o que nos diferencia — a última fronteira de autenticidade.
Reflexão final: o manifesto da sobrevivência criativa
“Questione tudo” não é paranoia, mas higiene mental. É um convite para não sermos passageiros passivos da nova ordem algorítmica, mas navegadores críticos e conscientes. A sobrevivência criativa e intelectual na era da IA passa por três habilidades interligadas: dominar as ferramentas com coragem e curiosidade, cultivar uma postura crítica frente às “verdades” prontas e fortalecer os laços humanos que preservam o que há de mais autêntico em nós.
Mo Gawdat nos oferece um mapa para essa jornada — que exige técnica, ética e humanidade. O futuro não será definido pela máquina, mas pela forma como escolhemos nos relacionar com ela e, sobretudo, uns com os outros.