Se a história do design é um artefato que desvenda as entranhas de uma era, então a ascensão de Michel Temer à Presidência do Brasil nos legou um símbolo que, ironicamente, se tornou o mais visceral retrato de sua própria crise de legitimidade. Não falamos aqui de um simples logotipo governamental, mas de uma peça que, concebida e que sob o olhar puro de uma criança, se transformou em palanque para o deboche nas redes sociais, grito de guerra dos designers e um estudo de caso para o futuro do branding político em tempos de instabilidade.

A Inocência do ‘Michelzinho’ e a Estratégia Que Desmoronou
Imagine a cena: os bastidores do poder, após o controverso impeachment que levou Temer à cadeira presidencial sem um voto direto das urnas. É nesse caldeirão político que surge o publicitário Elsinho Mouco, extasiado, revelando a musa inspiradora da nova marca do governo: Michelzinho, o filho de sete anos do então presidente. “Quando entrou na sala, ele olhou e falou ‘que lindo’, com uma expressão de criança mesmo, verdadeira e emocional. Se uma criança gosta, é porque a gente tem algo puro, tem algo bom na mão. Foi o Michelzinho quem escolheu a marca”, declarou Mouco, segundo a reportagem de O Tempo.
A versão que encantou o menino, com a esfera celeste “Ordem e Progresso” flutuando sobre a palavra “Brasil” em perspectiva, era um claro aceno ao frenesi verde e amarelo das manifestações anti-PT. A ideia era capitalizar o sentimento popular, mas a estratégia de marketing, por vezes, desafia a própria realidade.

O Veredito do Design: ‘Coxinha’, Retrô e Um Pedaço da Crise
Enquanto nos corredores do poder a pureza infantil validava a marca, nas trincheiras do design a história era outra. Longe da onda de simplificação e releitura da austeridade modernista que dominava a cena global, o logotipo era um salto temporal para o passado. Designers ouvidos pela Folha (e repercutidos por O Tempo) manifestaram estranhamento pelo uso do degradê azulado e dos contornos tridimensionais.
Rico Lins, uma sumidade no design brasileiro, não economizou: “É superconservador, retrógrado.” E a comparação mais ácida e recorrente? Hans Donner. Sim, o mestre das vinhetas da TV Globo, com seu estilo inconfundível dos anos 80 e 90, virou a referência de um logo federal que nascia sob o signo da “caretice” e do “ranço”. Milton Cipis, da agência Brander, foi cirúrgico: “Não tem uma mensagem nova. É uma marca muito feia, muito ‘coxinha’ e feita às pressas. Não tem estudo, elegância. Parece uma coisa do Hans Donner de 50 anos atrás. Já mostra de cara uma certa caretice e ranço desse governo.” A ironia de um logo que, ao invés de projetar um futuro, parecia preso em um passado estético – e, para muitos, político – que o próprio país tentava superar.
Mesmo a Globo, ironicamente, já suavizava os traços de Donner, o que tornava a marca federal, na visão de jovens designers, com a cara de uma “cartela de novela antiga”.

A Defesa do Marqueteiro e a Sutil (ou Nem Tanto) Ligação Com o Poder Não Votado
Elsinho Mouco, radiante com a “bomba” que sua criação havia se tornado nas redes, encarava as críticas como elogios. Para ele, a marca era “límpida, clara, simples como ele [Temer] é”, e de alguma forma, refletia o “estado de caos nas contas públicas e na saúde do país, além da alta do desemprego.” Uma defesa inusitada, quase um meta-comentário sobre a própria ilegitimidade percebida do governo: se a imagem é feia, é porque o cenário é feio. Uma justificativa que, de forma quase poética, ligava a estética duvidosa do logo à complexa realidade de um presidente que assumiu sem o respaldo direto do voto popular.
A preocupação em remover qualquer tom que lembrasse o governo “impichado” era evidente, e a busca por associar toda a nova gestão a uma única identidade visual — comparada por Mouco ao “plim-plim” da Globo — mostrava a ambição de criar uma narrativa de unidade. No entanto, a perspectiva dos jovens designers Beto Uechi e Gil Tokio, do estúdio Pingado, revelou uma camada mais profunda: o logotipo, visto de baixo para cima, dava a sensação de um “Estado onipotente e grandioso, talvez opressor”, especialmente com o slogan “Ordem e Progresso”, uma referência positivista que remete a um controle e imposição, e não à liberdade democrática.
O Veredito da Internet: Quando o Povo Redesenha o Poder
A marca do governo Temer se tornou, assim, um ícone multifacetado de sua era: um símbolo da crise de imagem, da desconexão com as tendências estéticas e, sobretudo, do humor cáustico e da capacidade de redesenho da internet. Transformada em emoticons, na “supergrávida fake de Taubaté” e em inúmeras paródias, a peça “pura” de Michelzinho, que Mouco jurava não ter “grávida, gado correndo e poço de petróleo”, acabou virando exatamente isso nas mãos do povo.
A história, caros leitores, frequentemente revela suas nuances mais profundas nos detalhes mais inesperados. A identidade visual de um governo, escolhida pela inocência de uma criança, se tornou um espelho distorcido das expectativas, das frustrações e da própria essência de um período político controverso, mostrando que, no final das contas, o design é político. E a ironia de um poder não eleito que se via representado por um símbolo tão contestado, bom, essa é atemporal e está marcada na memória visual do país.
Fontes:
- O Tempo: “Marca do governo Temer foi escolhida por Michelzinho, de 7 anos” (Disponível em: https://www.otempo.com.br/politica/marca-do-governo-temer-foi-escolhida-por-michelzinho-de-7-anos-1.1300599)
- Agência Senado (para contexto sobre a presidência de Temer e o impeachment)